O grupo terrorista conhecido como Estado Islâmico tristemente tem se tornado famoso por diversas barbáries a pretexto da defesa de uma religião que, como todas as demais, fala de paz. Assusta, não só por sua violência e ousadia, mas também por possuir uma impressionante capilaridade: dele fazem parte pessoas de diversas culturas e países, que aderem sua causa como que chamados por um canto de sereia.
Nesse contexto, publicou-se incômodas conclusões de órgãos de inteligência brasileiros que descobriram atividades do referido grupo terrorista objetivando cooptar jovens brasileiros para seus quadros[1], inclusive tendo identificado um grupo de 10 pessoas que já estaria atuando nas redes sociais. Haveria, portanto, o risco de que o modelo de cooptação deste grupo, que tem sido bem sucedido na Europa, seja replicado na América Latina em geral e no Brasil em especial.
É difícil compreender como pessoas de realidades tão diferentes umas das outras possam aderir repentina e radicalmente à essa causa. Há, contudo, boas explicações para tanto. Uma delas foi trazida por Daniel Martins Barros, em matéria “Como se faz um terrorista”[2] para O Estado de São Paulo. Reproduzo aqui um trecho, grifado:
“Sabe-se, por exemplo, que a maioria das pessoas cooptadas por organizações extremistas, eventualmente transformados em terroristas, são jovens, no final da adolescência e começo da idade adulta e quase sempre homens. Essa faixa etária apresenta grandes vulnerabilidades, explorada com maestria pelos recrutadores. A primeira é a necessidade de se sentir parte de algo, ser acolhido, que todo ser humano tem, mas os adolescentes em especial. Além disso, com o desenvolvimento do pensamento abstrato nessa fase surgem vários questionamentos existenciais. A busca por um sentido na vida abre uma janela de oportunidade para doutrinação radical que lhes forneça esse sentido. Os recrutadores do terror então acenam para os jovens com a possibilidade se identificar com um grupo e de encontrar um propósito em suas vidas.”
Ou seja, o mencionado grupo terrorista procura jovens em razão de sua vulnerabilidade, em razão de, nesta fase, estarem buscando propósitos para suas vidas e terem a necessidade de ser parte de algo maior. Explora-se a “janela de oportunidade” existente neste momento da vida em que, embora já exista uma boa maturidade intelectual, os impulsos emocionais e da psique ainda são incompreendidos. Basicamente, é esse o mecanismo utilizado pelo Estado Islâmico para cooptar fileiras inteiras de jovens por todo o mundo.
Não obstante seja fácil aceitar a existência e a eficiência desse mecanismo utilizado pelos terroristas, é impressionante a quantidade de discursos que o ignoram quando em jogo uma outra realidade: a dos jovens em conflito com a lei.
É notória a comoção causada por crimes cometidos por crianças ou adolescentes, sendo eles exaustivamente explorados pela mídia, ainda que ignorada sua real repercussão estatística. Sempre que há um novo caso de, digamos, latrocínio, ressurge das cinzas o discurso punitivista que busca caracterizar o instituto da maioridade penal como um “manto de impunidade”. Há, inclusive, autoridades públicas que declaram abertamente ser a inimputabilidade penal uma “permissão para matar”[3].
No âmbito do Congresso, diversas iniciativas vão no sentido de reduzir, remover ou relativizar a maioridade penal. Atualmente, diversas proposições estão reunidas na Proposta de Emenda Constitucional 171/1993 em tramitação na Comissão de Constituição de Justiça. Para não me alongar demais, faço remissão à robusta nota técnica[4] elaborada em conjunto pelo IBCCRIM, a Rede de Justiça Criminal e a Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública de São Paulo, que demonstra claramente a inadequação jurídica da medida.
Diante desse cenário cabe questionar: se compreendemos tão bem a fragilidade que leva tantos jovens ao redor do mundo a caírem nas garras do terrorismo, por que não percebemos que os nossos jovens estão igualmente expostos ao crime organizado? Se jovens europeus[5],[6], que presumivelmente tiveram boa educação e acesso à serviços públicos, foram vulneráveis a ponto de serem cooptados, o que dizer de crianças e adolescentes que vivem marginalizados?
A estratégia atribuída ao Estado Islâmico é a mesma que, diariamente, o crime organizado utiliza todos os dias em nosso país (e, diga-se, em tantos outros). A falta de lazer, de acesso à educação, cultura, serviços básicos e assistência familiar formam um terreno fértil para que jovens pobres sejam cooptados. A ausência de perspectiva, de sonhos e de futuro permite que, facilmente, seja oferecida a eles a promessa de um grupo, de um pertencimento a algo, seja lá o que for. É exatamente o que todos buscamos nessa idade.
Se reconhecemos a efetividade, por assim dizer, da estratégia de cooptação dos “de fora”, é necessário, também, reconhecer que, aqui em Terra Brasilis não é diferente. É necessário seguir o caminho inverso e dar aos jovens as condições necessárias para que vejam um outro caminho possível: o Estado precisa mostrar que deseja acreditar na juventude e dar a ela as ferramentas necessárias para se desenvolver de maneira ampla e realizar todas as suas potencialidades sem recorrer ao crime para tanto.
Para tanto, fortalecer a proteção social, incentivar projetos de cultura, esporte, cursos profissionalizantes e uma escola pública de qualidade são estratégias muito mais eficientes para evitar que os jovens se aproximem do crime. Sabemos que o poder não deixa vácuos, de modo que sempre que o Estado deixa de se fazer presente — a exemplo do que faz em favelas e comunidades pobres — deixa espaço para que outros agentes tomem seu lugar. É aí que a cooptação ocorre.
Não reduzir na maioridade penal é assumir um valente compromisso com os jovens, de ver a vida como é e acreditar que há futuro. Esperamos que nosso Congresso tenha essa coragem e não seja, também, “cooptado” pelo discurso sedutor do populismo penal.
[3] Não ignorar que, cometido um ato infracional, há a possibilidade de aplicação de internação que, na prática, muito se assemelha a uma prisão comum.
[6] http://veja.abril.com.br/noticia/mundo/subcultura-jihadista-engrossa-fileiras-do-terror-do-estado-islamico/
Rodrigo Dornelles é advogado, especialista em Direitos Humanos (Universidad Autónoma de Madrid), membro do Departamento Jurídico XI de Agosto.
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