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sexta-feira, 13 de março de 2015

Sobre a arte de se comunicar com crianças

Autora de 30 livros infantis, a escritora portuguesa Isabel Minhós Martins aprendeu a construir pontes para o mundo infantil e diz que, para ouvir bem nossos filhos, precisamos de tempo

ISABEL CLEMENTE
08/03/2015 
Quem já se sentiu obrigado a tratar de um tema delicado com o filho antes do tempo que julgava ideal? Morte, doença, sofrimento, dificuldades financeiras, frustração, depressão são assuntos difíceis que gostaríamos de banir do universo infantil e até da vida, se fosse possível. Mas não é. Momentos tristes fazem parte da história de todos nós e deixam lições, inclusive para as crianças.

Como começar uma conversa complicada? Bons livros infantis podem ser a ponte para essas áreas onde nos sentimos pouco a vontade. Livros inauguram conversas de forma lúdica, introduzindo conceitos como aceitação (de uma situação), persistência (para mudar o que se quer), tolerância (para aceitar o que não se pode mudar), a necessidade de se reerguer depois de uma tormenta, entre outros desafios.

Capa do livro Para onde vamos quando desaparecemos? (Tordesilhinhas), da portuguesa Isabel Minhós Martins (Foto: Divulgação)
Capa do livro Para onde vamos quando desaparecemos?
(Tordesilhinhas), da portuguesa Isabel Minhós Martins
(Foto: Divulgação)
Com 30 livros infantis publicados, a escritora portuguesa Isabel Minhós Martins, de 40 anos, é uma especialista na construção dessas pontes-diálogo. De sua autoria, acaba de chegar ao Brasil Para onde vamos quando desaparecemos? (Tordesilhinhas), eleito um dos melhores livros para crianças em 2013 pela Time Out London, e  recomendado pelo Plano Nacional de Leitura de Portugal. O livro aborda sutilmente a morte a partir do conceito do desaparecimento das coisas - poças que secam, meias que se perdem (pois é, até em Portugal...), o barulho que cessa. Com ilustrações de Madalena Matoso, uma parceira frequente nas criações da editora portuguesa Planeta Tangerina, da qual Isabel é uma das fundadoras, o livro narra uma história que convida o leitor a usar a imaginação para explicar por que, afinal, nada dura para sempre, sem mencionar a palavra morte.

Mãe de um menino de 10 e uma menina de 7, Isabel diz que, para se comunicar com eles, precisa fazer mais silêncios do que emitir opiniões porque ambos "são muito faladores". É o que acontece na minha casa, onde duas faladeiras disputam a atenção dos pais e exigem de nós muitos silêncios. Por mais que a barulheira canse a beleza (rsrs), esse ritual nos dá a chance de observar gestos e detalhes que dizem muito mais do que palavras. Crianças, por vezes, parecem mesmo um livro infantil, repletas de perguntas e páginas por serem escritas.

Entrevistei minha xará d’além-mar sobre a arte de falar com os pequenos e o que surge dessa conversa - reproduzida abaixo - é que a mesma lógica usada na construção de um livro infantil pode nos pautar para melhores diálogos com nossos filhos, se investirmos nisso tempo, afeto e cuidado com o outro.

ÉPOCA – Algum fato ou situação com crianças a inspirou a escrever Para onde vamos quando desaparecemos ?
Isabel Minhós Martins - Não foi o desaparecimento de ninguém em concreto, mas uma situação muito banal. Uma tarde estava observando meus filhos a andar de bicicleta numa pracinha com muitas poças de água. E comentamos como havia tantas poças e como era preciso tanta habilidade para nos desviarmos sem nos molharmos. Entretanto, o tempo mudou, veio o sol e, no dia seguinte, quando voltamos, todas aquelas poças tinham desaparecido. Espantámo-nos e perguntámo-nos “incrível!, para onde terão ido as poças de ontem?” Foi só isto. As poças quando desaparecem vão mesmo para o céu. E depois comecei a pensar para onde iriam todas as coisas que existem à nossa volta. O sol, as folhas, as nuvens, a areia da praia, a neve... E claro, fazendo um paralelo, mesmo que implícito com a morte humana.

ÉPOCA - A morte é sempre um tema difícil de lidar. Você usou alguma lembrança de infância sobre isso? 
Isabel - Quando era pequena, como todas as crianças, tinha um medo gigante que os meus pais desaparecessem. Sofria muito quando se atrasavam, por exemplo. Ou quando eu ia de férias para casa dos meus avós e ficava alguns dias sem os ver. Durante a infância, não houve nenhuma morte que me tivesse marcado, até porque os meus avós morreram quando eu já era adulta. Mas a pergunta “para onde vamos quando desaparecemos?“ é universal e persegue-nos desde sempre e para sempre (pelo menos enquanto aqui estivermos ou enquanto fizermos perguntas...). O que me interessou neste livro não foi encontrar uma resposta, até porque cada pessoa tem a sua resposta pessoal, cada religião tem também as suas respostas e obviamente que a ideia não era trazer uma teoria nova sobre o assunto. Eu quis apenas explorar poeticamente o tema, deixando nos leitores a vontade de inventar as suas próprias teorias sobre o assunto. A proposta foi: se a morte é um mistério, vamos aproveitar esse mistério para o enchermos com imaginação, procurando respostas nas coisas que existem à nossa volta (das meias que desaparecem dentro do sofá, às rochas que demoram séculos e séculos a desaparecer...)

ÉPOCA - Pelas perguntas, instigamos as crianças a buscar suas próprias respostas. A construção de um entendimento possível pode ser a saída para ajudá-las a compreender temas difíceis? 
Isabel -  Devemos ser capazes de falar sobre tudo com as crianças. Claro que há temas que só faz sentido abordar com elas se forem as próprias a trazê-los à mesa da conversa. Mas devemos dar-lhes esse espaço. Também acho que, em relação a muitos assuntos, devemos ser capazes de dizer “não sei” ou “ninguém sabe muito bem”. Enquanto humanos, é importante que não nos consideremos os maiores do mundo e arredores. Porque comparados com muitas outras coisas, a natureza, o cosmos, o invisível ou todos os mistérios que existem, somos seres pequeninos e não devemos ter medo de dizer isso. Com as crianças, o que faz mais sentido, o que pode dar-lhes mais segurança, é envolvê-las nestas questões, abraçá-las, não as deixar de fora ou sozinha no meio de todo o espaço infinito. Dizer “isto é enorme, há imensa coisa que não sabemos, mas estamos aqui todos juntos para apreciar e descobrir”.

ÉPOCA - Qualquer tema pode inspirar um bom livro infantil? Pergunto isso porque os livros são pontes para o universo da criança, tratam de assuntos que lhes dizem respeito mas também levam até elas questões novas.
Isabel -  Por vezes perguntam-me se os textos que escrevo, os temas que escolho são mesmo para crianças (porque muitas vezes não são os temas tradicionais dos livros infantis e também não têm aquela estrutura mais clássica de uma narrativa que começa por “Era uma vez!). O que sinto é que um autor não deve mudar a sua voz em função do interlocutor. Deve dizer o que tem a dizer, atirar o livro ao ar e o leitor que o apanhar, ler e gostar...é o leitor certo, independentemente da idade ou do lugar do mundo em que mora.
Todos os temas fazem sentido para uma criança, até porque as crianças não são todas iguais e cada uma terá os seus interesses, as suas questões, que dependem também muito da fase em que se encontra, da idade e da vida que tem. Penso que os autores de obras para a infância devem arriscar sempre. Porque nesta área há muitas fórmulas de sucesso garantido, há muitas estratégias e muitos truques para chegar aos mais novos, mas isso acaba por ser algo construído de fora para dentro. Para mim, enquanto autora, faz sentido arriscar: vou por aqui, sem grandes certezas, mas é um caminho novo que eu quero experimentar e você, leitor, quer vir também?

Época - O que é preciso para ouvir bem uma criança? E fazer com que ela nos ouça?
Isabel -  Para ouvir é preciso tempo. Esta começa a ser uma frase batida, mas o problema persiste (vidas frenéticas, pais acelerados, prioridade máxima ao trabalho, intromissão excessiva da tecnologia nas nossas vidas). É preciso tempo. Tempo livre verdadeiro, sem ser aquele tempo livre com aula de violino, seguida de aula de Inglês, seguida de patinação artística...E depois não basta ouvir apenas com os ouvidos, é preciso fazê-lo com os olhos também. Observar a expressão, os gestos enquanto alguém fala faz toda a diferença.
Para fazer com que uma criança nos ouça, é preciso que ela perceba quando “é a sério” ou “é brincadeira”. E quando queremos mesmo ser ouvidos, devemos também não usar apenas a boca, mas falar com os olhos e com o resto do corpo.
É isso que tento nos meus livros: que pais e crianças (pois ambos são leitores e muitas vezes simultâneos) tenham uma experiência de cuidado, afeto. O cuidado que um autor coloca ao escrever ou a ilustrar tem a ver com esse respeito pelo leitor, pelo desejo de encontro e que pode também passar por alguma exigência: “Não vou falar contigo com voz de bebê ou fazendo uma palhaçada (nada contra!), não vou pôr-me de joelhos para ficar baixinho, vou sim falar com a minha voz de todos os dias, procurando os pontos que temos em comum: o humor, o desejo de clareza e simplicidade, as perguntas que trazemos, a curiosidade...

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