22 / AGOSTO / 2014 — ROLIMÃ
POR CARLOS JÁUREGUI
“Pode até piorar a situação da segurança”. Essa foi uma resposta frequente entre entrevistados para esta reportagem frente a um cenário de diferentes projetos de emenda que propõem o mesmo tratamento criminal para adolescentes e adultos.
A principal motivação para uma mudança dessa natureza seria o enfrentamento à violência que, em certas situações, envolve a participação de pessoas com menos de 18 anos. A partir daí, algumas propostas propõem que a maioridade penal seja reduzida para 16 anos, enquanto outras sugerem 14, 13 e até 11 anos de idade. Mas seria esse o caminho mais adequado para garantir uma sociedade mais justa e segura?
A falsa promessa da segurança
Nos últimos anos, casos de violência praticados por adolescentes tiveram grande repercussão midiática. Ao tomarem as capas de jornais e se tornarem assunto em programas televisivos de temática policial, tais fatos contribuíram para que se criasse a impressão de que os adolescentes estão ficando cada vez mais perigosos.
Contudo, se observarmos com mais cuidado o fenômeno da violência, percebemos que a grande repercussão desses casos pode gerar uma apreensão distorcida do problema. Se tomarmos Belo Horizonte e Região Metropolitana como exemplo, vemos que, de 2009 a 2013, o número de registros de entradas de adolescentes no Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional (CIA-BH) se manteve estável na faixa de 9 mil entradas por ano (veja quadro abaixo).
Considerando apenas os casos de apreensões relativas a homicídios, é possível notar, inclusive, uma tendência de queda. Em 2009, houve 43 casos (0,5% do total de registros) e, em 2013, o número chegou a 13 (0,1%) (ver quadro).
“O problema é real, é importante e não deve ser desconsiderado. Mas os adolescentes, em geral, não estão tão envolvidos nos atos mais violentos. A mídia e a sociedade, com sua cultura punitiva, dão uma dimensão maior do que realmente tem. Acontece um caso de jovem que matou, e já afirmam ‘os jovens estão matando muito’”, avalia o sociólogo Gustavo de Melo Silva, coordenador do setor de pesquisa da Vara Infracional da Infância e da Juventude de Belo Horizonte.
O pesquisador Robson Sávio Reis Souza, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) também, discorda da promessa de segurança feita por defensores da redução. “Primeiro, porque o contingente de adolescentes envolvidos em crimes violentos é muito menor sob o ponto de vista dos números reais. Segundo, porque as medidas socioeducativas, mesmo aquelas de meio fechado, são muito mais eficazes do que o sistema carcerário”, analisa.
De fato, o atual estado de superlotação do sistema prisional brasileiro por si só já deveria justificar uma negação a tais propostas. Segundo dados do Ministério da Justiça, em 2012 a população carcerária do país já chegava a um total de 550 mil pessoas, ultrapassando em 70% as 320 mil vagas oferecidas. “Temos a quarta maior população carcerária do mundo. E hoje esse sistema é mais controlado por organizações criminosas do que pelo Estado. Quem é mandado para as prisões acaba tendo que se envolver com essas organizações para poder sobreviver lá dentro. Então por que vamos colocar um adolescente nessas condições? É simplesmente postergar o problema, pois ele vai cumprir uma pena e sair pior do que entrou”, argumenta Robson.
Embora não exista uma estatística precisa para as taxas de reincidência nas penitenciárias brasileiras, juristas têm trabalhado com uma estimativa de 70%, um índice muito mais elevado do que aquele apresentado pelas medidas socioeducativas. De acordo com uma pesquisa de 2012, realizada pelo Programa de Justiça Jovem do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o índice de reincidência para as medidas socioeducativas de meio fechado seria de 43% no Brasil. Já no caso das medidas em meio aberto, diferentes instituições sugerem uma estimativa em torno de 20% ou 30%.
Em Minas Gerais, o índice de reincidência dos adolescentes sentenciados a medidas de privação de liberdade fica em torno de 10%, segundo dados fornecidos pela Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas (Suase), vinculada à Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds). Ainda de acordo com a Suase, não há um banco de dados unificado para as medidas de meio aberto, uma vez que elas são responsabilidade dos municípios. A falta desses dados e de informações sobre a vida adulta dos adolescentes egressos da internação dificultariam a produção de estatísticas mais precisas.
Mesmo que os números do Sistema Socioeducativo não revelem o melhor dos mundos, o fato de pessoas envolvidas diretamente nesse atendimento e de especialistas da segurança apontarem resultados melhores do que as penitenciárias é um elemento central para o debate.
ECA e Sinase: leis em implantação
A partir de seu conhecimento da legislação brasileira e do convívio diário com casos de adolescentes em conflito com a lei, o promotor de Justiça Márcio Rogério de Oliveira é enfático ao dizer que o Estatuto da Criança e do Adolescente não promove a impunidade de meninos e meninas. “Pelo contrário, o Brasil é um dos países que começa a responsabilizar mais cedo, aos 12 anos. E essas medidas são semelhantes às penas previstas aos adultos, mas devem ter uma proposta educativa direcionada aos adolescentes”, explica Márcio, que atua na Promotoria da Justiça da Infância e da Juventude da capital e integra o Fórum Permanente do Sistema de Atendimento Socioeducativo de Belo Horizonte (veja quadro abaixo sobre as diferentes medidas socioeducativas).
Embora o promotor avalie que alguns ajustes possam ser feitos no ECA (sem a necessidade da redução da maioridade penal), ele defende que a prioridade ainda consista na aplicação efetiva do que está na lei e, não, em mudanças legislativas. “Temos que estruturar esse sistema. Um sistema que ofereça medidas de meio aberto e medidas de meio fechado, com infraestrutura, com recursos humanos bem dimensionados, preparados e valorizados. E essas medidas têm que ter uma proposta pedagógica consistente. Não adianta deixar o menino preso ou colocá-lo na liberdade assistida sem saber aonde queremos chegar. Temos que acompanhá-lo na escola, inseri-lo em atividades profissionalizantes, de esporte, cultura e lazer”.
A presidente do Comitê Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Míriam Santos, também aposta na implantação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase): “um dos motivos de sermos contra a maioridade penal é porque o ECA e o Sinase não foram implementados completamente. O Conanda tem feito inspeção nas unidades socioeducativas, e o que temos encontrado são condições muito precárias. Dentro das unidades, os meninos não têm acesso à escolarização, não têm biblioteca, não têm refeitório, atividades esportivas”.
A avaliação negativa das condições dos centros de internação se torna ainda mais preocupante se considerarmos a quantidade de jovens que se encontram nesses locais. Segundo levantamento do CNJ, em 2012, já tínhamos mais de 17 mil adolescentes nos centros de internação brasileiros. No caso de Minas, de acordo com dados da Suase, atualmente temos uma população de mais de 2.500 meninos e meninas cumprindo medidas de internação e semiliberdade.
Além da necessidade de promover melhorias dos centros de internação, esse cenário aponta para a necessidade de se investir em medidas de meio aberto para que a privação de liberdade seja sempre o último recurso. “No momento em que um adolescente comete um ato infracional, seja o mais simples que for, ele tem que receber uma medida correspondente. Se a medida for bem aplicada e se, em torno do adolescente, tiver um conjunto de políticas públicas para ele e sua família, é possível diminuir em grande escala a ocorrência de atos mais graves e a ida para a internação”, observa a coordenadora Nacional da Pastoral do Menor, Marilene Cruz.
Entre o Estado Penal e o Estado de Direitos
A partir da experiência da Pastoral do Menor com a execução de medidas de meio aberto, Marilene também destaca a necessidade de priorizar ações voltadas mais diretamente para os adolescentes em situação de vulnerabilidade social, mais propensos ao cometimento de atos infracionais. “Há relatórios com informações sobre o autor de ato infracional. A partir disso, temos o perfil desses adolescentes, sabemos a idade deles, a escolaridade, os bairros onde eles cometem os atos, onde eles residem. Se, de posse desses dados, investirmos efetivamente em políticas públicas, teremos transformação”, avalia.
E o perfil do adolescente que chega ao sistema socioeducativo, de fato, condiz com os estratos mais vulneráveis da nossa sociedade, seja em âmbito nacional (veja o quadro abaixo), seja em nível local. Dos entrevistados para a realização do relatório de 2013 do CIA-BH, 76% se declararam pardos e pretos e, embora a maior parte dos adolescentes que chegam ao centro tenha entre 15 e 17 anos (71,6%), apenas 17,8% frequenta o ensino médio.
Responsável pela produção dessas estatísticas para a Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), Gustavo Melo relaciona a existência desses padrões com uma tendência de avanço do Estado Penal. “Como o Estado não dá conta de resolver os problemas sociais, é mais fácil tirar de circulação as pessoas que se tornam ‘problemas’”, analisa o sociólogo.
A forma como diferentes oportunidades oferecidas podem aproximar ou afastar um adolescente da prática do ato infracional pode ser exemplificada a partir da experiência vivida pela psicanalista Cristiane Barreto na coordenação do Programa de Liberdade Assistida em Belo Horizonte. “Na época se falava muito de vestibular – isso é um drama para uma parcela da população jovem – mas, enquanto isso, você ouvia essa palavra duas ou três vezes por ano num universo de 2.600 adolescentes atendidos [na liberdade assistida]. Isso é muito segregador”, relata Cristiane, que esteve à frente do programa no período de 1998 a 2006.
A psicanalista avalia que todo o destaque dado para as propostas de redução da maioridade penal faz parte de um contexto de acirramento de um embate classista. “Isso nos desvia do que deveria ser o foco das discussões sobre a juventude. E, para mim, o principal problema é: como é possível dormir com o barulho de tantas mortes na periferia?”, questiona. Jovens de 15 a 24 anos constituem o principal grupo alvo de violência no Brasil – segundo dados do Mapa da Violência, do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos, em 2011 a taxa de homicídios juvenis do país foi de 53,4 por 100 mil jovens.
Para a professora da área de direito penal e criminologia da Universidade Federal de Santa Catarina, Vera Regina Pereira de Andrade, a mobilização em torno da redução da maioridade penal revela a adoção de um modelo punitivo por parte da sociedade e do Estado. “Decidir entre tratar a juventude (pobre e negra) com penalização ou com escola, mercado de trabalho, lazer, cultura, é uma escolha política. O Estado brasileiro está escolhendo a primeira opção e produzindo um continuado desperdício da potência juvenil no nosso país. Desperdício que inclui o extermínio”, analisa a pesquisadora, que também tem atuado como consultora para o Ministério da Justiça e para a Casa Civil da Presidência da República.
E os adolescentes de hoje?
Defensores da redução da maioridade penal evocam comumente a imagem de uma suposta inocência dos jovens no passado. Para muitos, os adolescentes de hoje, com acesso a mais informações do que as gerações passadas, estariam tão preparados quanto os adultos para responder por seus atos.
Tal visão, no entanto, não tem fundamentos científicos confiáveis. De acordo com a pediatra Solange de Melo Miranda, coordenadora do Núcleo de Saúde do Adolescente do Hospital das Clínicas da UFMG, é preciso ter cuidado para não confundir o conhecimento das normas de convívio social, que meninos e meninas de fato teriam, com um complexo processo de assimilação dessas regras que ocorreria ao longo da adolescência. “Em um nível mais cognitivo, intelectual, o adolescente consegue fazer essas operações. Ele sabe da existência de normas, mas ainda falta elaborar esse conhecimento para que oriente a prática. Como o adulto normalmente deveria agir? Ele pensa, elabora e age. Mas, na adolescência, essa fase de elaboração ainda é muito frágil. O sujeito vai da situação para a ação. Aí vem briga na escola, a briga com a família, atos que não serão tão problemáticos, mas também vem o ato infracional”, explica.
Com base nisso, a pediatra afirma que as medidas para responsabilização devem respeitar as peculiaridades dessa etapa de vida: “o mais importante é oferecer espaços para que o adolescente se expresse e possa elaborar de fato essas informações. Nessa fase, ele também vive um processo de desligamento da família e passa por um grupo que lhe dá certa identidade. Se ele for mandado para uma prisão, que grupo será esse? Colocar um adolescente na prisão é abortar um processo de desenvolvimento”.
Solange defende a manutenção da atual maioridade penal de 18 anos para fins de formulação de políticas públicas. Ela ressalta que o processo de amadurecimento tem uma duração diferente em cada indivíduo e lembra que, para a Organização Mundial de Saúde, a adolescência é uma etapa ainda mais longa do que se assume nas leis brasileiras, indo dos 10 aos 20 anos.
Não às soluções fáceis
Frente a questionamentos sobre a capacidade de os adolescentes executarem avaliações morais e preverem as consequências dos seus atos, o biólogo André Frazão Helene, coordenador do laboratório de Ciências da Cognição do Instituo de Biociências da USP, também evita respostas simplificadoras. “As decisões envolvendo riscos e consequências estão associadas a áreas pré-frontais do córtex [cerebral], que têm a formação final durante a adolescência. Mas esse processo envolve muito mais do que a capacidade biológica, envolve também a vivência que a pessoa tem. Envolve a necessidade de presumir as consequências de situações que ela nunca vivenciou e, que em alguns casos, não admitem erros”.
A partir dessa lógica, o pesquisador prefere não dar uma resposta científica definitiva em relação à idade mais adequada para que os indivíduos sejam considerados criminalmente adultos. “Ao inserir um argumento das neurociências no debate da maioridade penal, corremos o risco de tirar o foco do ponto central, que é o efeito real que uma medida como essa pode ter na redução da criminalidade e na melhoria da vida das pessoas. O desenvolvimento neurológico é um aspecto importante da discussão, mas a solução para esse problema é muito mais sofisticada”.
Ressaltando a complexidade do desenvolvimento cognitivo e moral dos indivíduos, o biólogo chama a atenção para os riscos das soluções fáceis. “Essa maioridade de 18 anos é algo que nós estabelecemos, mas a ideia de que existe um momento de ruptura aos 16, 18, 20 ou 21 anos é irreal, pois se trata de um processo contínuo. A gente deve definir essa idade considerando muitas perspectivas e pensando nas consequências que essa decisão pode ter. A solução para a segurança não é fácil, porque, em última instância, se prender resolvesse, já estaria resolvido. Se soltar todo mundo resolvesse, também já estaria resolvido”.
CASOS EXTREMOS SÃO MINORIA
Um questionamento muito frequente diz respeito a atos de extrema crueldade que sugeririam a existência de casos de psicopatia ou sociopatia entre adolescentes. Contudo, o próprio Sinase já prevê o que deve ser feito nessas circunstâncias, orientando que, no caso de um adolescente apresentar indícios de sofrimento mental, ele deverá receber tratamento de acordo com as disposições da Lei 10.216 de 2001, que não descarta a possibilidade de internação compulsória a pedido judicial. Felizmente a experiência de quem trabalha com adolescentes mostra que essas situações não são comuns. “Quando há um homicídio, em pouquíssimos casos o adolescente age de forma autônoma, por motivação e deliberação própria”, explica o promotor Márcio Rogério de Oliveira, lembrando que, na maioria das vezes, o adolescente que atenta contra a vida age em associação com um adulto.
Frente a esse cenário, a coordenadora de campanhas da Sociedade Brasileira de Pediatria adverte para o perigo de transformar casos isolados em uma regra: “não podemos fazer uma lei para todos os adolescentes com base na exceção; sem contar que um diagnóstico dessa natureza é muito complexo e demorado”. Com uma visão semelhante, a diretora do Sindicato de Psicólogos do Estado de São Paulo chama atenção para a necessidade de mais investimentos na saúde psicológica de meninos e meninas. “A sociedade tem que ser mais igualitária na base. Se tivermos o Centro de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSi) para cuidar de algum adolescente que eventualmente tiver um surto ou uma vinculação muito precoce com uso de drogas, e se fizermos uma intervenção casada com a escola e a família, teremos avanços”.
POR CARLOS JÁUREGUI
“Pode até piorar a situação da segurança”. Essa foi uma resposta frequente entre entrevistados para esta reportagem frente a um cenário de diferentes projetos de emenda que propõem o mesmo tratamento criminal para adolescentes e adultos.
A principal motivação para uma mudança dessa natureza seria o enfrentamento à violência que, em certas situações, envolve a participação de pessoas com menos de 18 anos. A partir daí, algumas propostas propõem que a maioridade penal seja reduzida para 16 anos, enquanto outras sugerem 14, 13 e até 11 anos de idade. Mas seria esse o caminho mais adequado para garantir uma sociedade mais justa e segura?
A falsa promessa da segurança
Nos últimos anos, casos de violência praticados por adolescentes tiveram grande repercussão midiática. Ao tomarem as capas de jornais e se tornarem assunto em programas televisivos de temática policial, tais fatos contribuíram para que se criasse a impressão de que os adolescentes estão ficando cada vez mais perigosos.
Contudo, se observarmos com mais cuidado o fenômeno da violência, percebemos que a grande repercussão desses casos pode gerar uma apreensão distorcida do problema. Se tomarmos Belo Horizonte e Região Metropolitana como exemplo, vemos que, de 2009 a 2013, o número de registros de entradas de adolescentes no Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional (CIA-BH) se manteve estável na faixa de 9 mil entradas por ano (veja quadro abaixo).
Considerando apenas os casos de apreensões relativas a homicídios, é possível notar, inclusive, uma tendência de queda. Em 2009, houve 43 casos (0,5% do total de registros) e, em 2013, o número chegou a 13 (0,1%) (ver quadro).
“O problema é real, é importante e não deve ser desconsiderado. Mas os adolescentes, em geral, não estão tão envolvidos nos atos mais violentos. A mídia e a sociedade, com sua cultura punitiva, dão uma dimensão maior do que realmente tem. Acontece um caso de jovem que matou, e já afirmam ‘os jovens estão matando muito’”, avalia o sociólogo Gustavo de Melo Silva, coordenador do setor de pesquisa da Vara Infracional da Infância e da Juventude de Belo Horizonte.
O pesquisador Robson Sávio Reis Souza, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) também, discorda da promessa de segurança feita por defensores da redução. “Primeiro, porque o contingente de adolescentes envolvidos em crimes violentos é muito menor sob o ponto de vista dos números reais. Segundo, porque as medidas socioeducativas, mesmo aquelas de meio fechado, são muito mais eficazes do que o sistema carcerário”, analisa.
De fato, o atual estado de superlotação do sistema prisional brasileiro por si só já deveria justificar uma negação a tais propostas. Segundo dados do Ministério da Justiça, em 2012 a população carcerária do país já chegava a um total de 550 mil pessoas, ultrapassando em 70% as 320 mil vagas oferecidas. “Temos a quarta maior população carcerária do mundo. E hoje esse sistema é mais controlado por organizações criminosas do que pelo Estado. Quem é mandado para as prisões acaba tendo que se envolver com essas organizações para poder sobreviver lá dentro. Então por que vamos colocar um adolescente nessas condições? É simplesmente postergar o problema, pois ele vai cumprir uma pena e sair pior do que entrou”, argumenta Robson.
Embora não exista uma estatística precisa para as taxas de reincidência nas penitenciárias brasileiras, juristas têm trabalhado com uma estimativa de 70%, um índice muito mais elevado do que aquele apresentado pelas medidas socioeducativas. De acordo com uma pesquisa de 2012, realizada pelo Programa de Justiça Jovem do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o índice de reincidência para as medidas socioeducativas de meio fechado seria de 43% no Brasil. Já no caso das medidas em meio aberto, diferentes instituições sugerem uma estimativa em torno de 20% ou 30%.
Em Minas Gerais, o índice de reincidência dos adolescentes sentenciados a medidas de privação de liberdade fica em torno de 10%, segundo dados fornecidos pela Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas (Suase), vinculada à Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds). Ainda de acordo com a Suase, não há um banco de dados unificado para as medidas de meio aberto, uma vez que elas são responsabilidade dos municípios. A falta desses dados e de informações sobre a vida adulta dos adolescentes egressos da internação dificultariam a produção de estatísticas mais precisas.
Mesmo que os números do Sistema Socioeducativo não revelem o melhor dos mundos, o fato de pessoas envolvidas diretamente nesse atendimento e de especialistas da segurança apontarem resultados melhores do que as penitenciárias é um elemento central para o debate.
ECA e Sinase: leis em implantação
A partir de seu conhecimento da legislação brasileira e do convívio diário com casos de adolescentes em conflito com a lei, o promotor de Justiça Márcio Rogério de Oliveira é enfático ao dizer que o Estatuto da Criança e do Adolescente não promove a impunidade de meninos e meninas. “Pelo contrário, o Brasil é um dos países que começa a responsabilizar mais cedo, aos 12 anos. E essas medidas são semelhantes às penas previstas aos adultos, mas devem ter uma proposta educativa direcionada aos adolescentes”, explica Márcio, que atua na Promotoria da Justiça da Infância e da Juventude da capital e integra o Fórum Permanente do Sistema de Atendimento Socioeducativo de Belo Horizonte (veja quadro abaixo sobre as diferentes medidas socioeducativas).
Embora o promotor avalie que alguns ajustes possam ser feitos no ECA (sem a necessidade da redução da maioridade penal), ele defende que a prioridade ainda consista na aplicação efetiva do que está na lei e, não, em mudanças legislativas. “Temos que estruturar esse sistema. Um sistema que ofereça medidas de meio aberto e medidas de meio fechado, com infraestrutura, com recursos humanos bem dimensionados, preparados e valorizados. E essas medidas têm que ter uma proposta pedagógica consistente. Não adianta deixar o menino preso ou colocá-lo na liberdade assistida sem saber aonde queremos chegar. Temos que acompanhá-lo na escola, inseri-lo em atividades profissionalizantes, de esporte, cultura e lazer”.
A presidente do Comitê Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Míriam Santos, também aposta na implantação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase): “um dos motivos de sermos contra a maioridade penal é porque o ECA e o Sinase não foram implementados completamente. O Conanda tem feito inspeção nas unidades socioeducativas, e o que temos encontrado são condições muito precárias. Dentro das unidades, os meninos não têm acesso à escolarização, não têm biblioteca, não têm refeitório, atividades esportivas”.
A avaliação negativa das condições dos centros de internação se torna ainda mais preocupante se considerarmos a quantidade de jovens que se encontram nesses locais. Segundo levantamento do CNJ, em 2012, já tínhamos mais de 17 mil adolescentes nos centros de internação brasileiros. No caso de Minas, de acordo com dados da Suase, atualmente temos uma população de mais de 2.500 meninos e meninas cumprindo medidas de internação e semiliberdade.
Além da necessidade de promover melhorias dos centros de internação, esse cenário aponta para a necessidade de se investir em medidas de meio aberto para que a privação de liberdade seja sempre o último recurso. “No momento em que um adolescente comete um ato infracional, seja o mais simples que for, ele tem que receber uma medida correspondente. Se a medida for bem aplicada e se, em torno do adolescente, tiver um conjunto de políticas públicas para ele e sua família, é possível diminuir em grande escala a ocorrência de atos mais graves e a ida para a internação”, observa a coordenadora Nacional da Pastoral do Menor, Marilene Cruz.
Entre o Estado Penal e o Estado de Direitos
A partir da experiência da Pastoral do Menor com a execução de medidas de meio aberto, Marilene também destaca a necessidade de priorizar ações voltadas mais diretamente para os adolescentes em situação de vulnerabilidade social, mais propensos ao cometimento de atos infracionais. “Há relatórios com informações sobre o autor de ato infracional. A partir disso, temos o perfil desses adolescentes, sabemos a idade deles, a escolaridade, os bairros onde eles cometem os atos, onde eles residem. Se, de posse desses dados, investirmos efetivamente em políticas públicas, teremos transformação”, avalia.
E o perfil do adolescente que chega ao sistema socioeducativo, de fato, condiz com os estratos mais vulneráveis da nossa sociedade, seja em âmbito nacional (veja o quadro abaixo), seja em nível local. Dos entrevistados para a realização do relatório de 2013 do CIA-BH, 76% se declararam pardos e pretos e, embora a maior parte dos adolescentes que chegam ao centro tenha entre 15 e 17 anos (71,6%), apenas 17,8% frequenta o ensino médio.
Responsável pela produção dessas estatísticas para a Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), Gustavo Melo relaciona a existência desses padrões com uma tendência de avanço do Estado Penal. “Como o Estado não dá conta de resolver os problemas sociais, é mais fácil tirar de circulação as pessoas que se tornam ‘problemas’”, analisa o sociólogo.
A forma como diferentes oportunidades oferecidas podem aproximar ou afastar um adolescente da prática do ato infracional pode ser exemplificada a partir da experiência vivida pela psicanalista Cristiane Barreto na coordenação do Programa de Liberdade Assistida em Belo Horizonte. “Na época se falava muito de vestibular – isso é um drama para uma parcela da população jovem – mas, enquanto isso, você ouvia essa palavra duas ou três vezes por ano num universo de 2.600 adolescentes atendidos [na liberdade assistida]. Isso é muito segregador”, relata Cristiane, que esteve à frente do programa no período de 1998 a 2006.
A psicanalista avalia que todo o destaque dado para as propostas de redução da maioridade penal faz parte de um contexto de acirramento de um embate classista. “Isso nos desvia do que deveria ser o foco das discussões sobre a juventude. E, para mim, o principal problema é: como é possível dormir com o barulho de tantas mortes na periferia?”, questiona. Jovens de 15 a 24 anos constituem o principal grupo alvo de violência no Brasil – segundo dados do Mapa da Violência, do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos, em 2011 a taxa de homicídios juvenis do país foi de 53,4 por 100 mil jovens.
Para a professora da área de direito penal e criminologia da Universidade Federal de Santa Catarina, Vera Regina Pereira de Andrade, a mobilização em torno da redução da maioridade penal revela a adoção de um modelo punitivo por parte da sociedade e do Estado. “Decidir entre tratar a juventude (pobre e negra) com penalização ou com escola, mercado de trabalho, lazer, cultura, é uma escolha política. O Estado brasileiro está escolhendo a primeira opção e produzindo um continuado desperdício da potência juvenil no nosso país. Desperdício que inclui o extermínio”, analisa a pesquisadora, que também tem atuado como consultora para o Ministério da Justiça e para a Casa Civil da Presidência da República.
E os adolescentes de hoje?
Defensores da redução da maioridade penal evocam comumente a imagem de uma suposta inocência dos jovens no passado. Para muitos, os adolescentes de hoje, com acesso a mais informações do que as gerações passadas, estariam tão preparados quanto os adultos para responder por seus atos.
Tal visão, no entanto, não tem fundamentos científicos confiáveis. De acordo com a pediatra Solange de Melo Miranda, coordenadora do Núcleo de Saúde do Adolescente do Hospital das Clínicas da UFMG, é preciso ter cuidado para não confundir o conhecimento das normas de convívio social, que meninos e meninas de fato teriam, com um complexo processo de assimilação dessas regras que ocorreria ao longo da adolescência. “Em um nível mais cognitivo, intelectual, o adolescente consegue fazer essas operações. Ele sabe da existência de normas, mas ainda falta elaborar esse conhecimento para que oriente a prática. Como o adulto normalmente deveria agir? Ele pensa, elabora e age. Mas, na adolescência, essa fase de elaboração ainda é muito frágil. O sujeito vai da situação para a ação. Aí vem briga na escola, a briga com a família, atos que não serão tão problemáticos, mas também vem o ato infracional”, explica.
Com base nisso, a pediatra afirma que as medidas para responsabilização devem respeitar as peculiaridades dessa etapa de vida: “o mais importante é oferecer espaços para que o adolescente se expresse e possa elaborar de fato essas informações. Nessa fase, ele também vive um processo de desligamento da família e passa por um grupo que lhe dá certa identidade. Se ele for mandado para uma prisão, que grupo será esse? Colocar um adolescente na prisão é abortar um processo de desenvolvimento”.
Solange defende a manutenção da atual maioridade penal de 18 anos para fins de formulação de políticas públicas. Ela ressalta que o processo de amadurecimento tem uma duração diferente em cada indivíduo e lembra que, para a Organização Mundial de Saúde, a adolescência é uma etapa ainda mais longa do que se assume nas leis brasileiras, indo dos 10 aos 20 anos.
Não às soluções fáceis
Frente a questionamentos sobre a capacidade de os adolescentes executarem avaliações morais e preverem as consequências dos seus atos, o biólogo André Frazão Helene, coordenador do laboratório de Ciências da Cognição do Instituo de Biociências da USP, também evita respostas simplificadoras. “As decisões envolvendo riscos e consequências estão associadas a áreas pré-frontais do córtex [cerebral], que têm a formação final durante a adolescência. Mas esse processo envolve muito mais do que a capacidade biológica, envolve também a vivência que a pessoa tem. Envolve a necessidade de presumir as consequências de situações que ela nunca vivenciou e, que em alguns casos, não admitem erros”.
A partir dessa lógica, o pesquisador prefere não dar uma resposta científica definitiva em relação à idade mais adequada para que os indivíduos sejam considerados criminalmente adultos. “Ao inserir um argumento das neurociências no debate da maioridade penal, corremos o risco de tirar o foco do ponto central, que é o efeito real que uma medida como essa pode ter na redução da criminalidade e na melhoria da vida das pessoas. O desenvolvimento neurológico é um aspecto importante da discussão, mas a solução para esse problema é muito mais sofisticada”.
Ressaltando a complexidade do desenvolvimento cognitivo e moral dos indivíduos, o biólogo chama a atenção para os riscos das soluções fáceis. “Essa maioridade de 18 anos é algo que nós estabelecemos, mas a ideia de que existe um momento de ruptura aos 16, 18, 20 ou 21 anos é irreal, pois se trata de um processo contínuo. A gente deve definir essa idade considerando muitas perspectivas e pensando nas consequências que essa decisão pode ter. A solução para a segurança não é fácil, porque, em última instância, se prender resolvesse, já estaria resolvido. Se soltar todo mundo resolvesse, também já estaria resolvido”.
CASOS EXTREMOS SÃO MINORIA
Um questionamento muito frequente diz respeito a atos de extrema crueldade que sugeririam a existência de casos de psicopatia ou sociopatia entre adolescentes. Contudo, o próprio Sinase já prevê o que deve ser feito nessas circunstâncias, orientando que, no caso de um adolescente apresentar indícios de sofrimento mental, ele deverá receber tratamento de acordo com as disposições da Lei 10.216 de 2001, que não descarta a possibilidade de internação compulsória a pedido judicial. Felizmente a experiência de quem trabalha com adolescentes mostra que essas situações não são comuns. “Quando há um homicídio, em pouquíssimos casos o adolescente age de forma autônoma, por motivação e deliberação própria”, explica o promotor Márcio Rogério de Oliveira, lembrando que, na maioria das vezes, o adolescente que atenta contra a vida age em associação com um adulto.
Frente a esse cenário, a coordenadora de campanhas da Sociedade Brasileira de Pediatria adverte para o perigo de transformar casos isolados em uma regra: “não podemos fazer uma lei para todos os adolescentes com base na exceção; sem contar que um diagnóstico dessa natureza é muito complexo e demorado”. Com uma visão semelhante, a diretora do Sindicato de Psicólogos do Estado de São Paulo chama atenção para a necessidade de mais investimentos na saúde psicológica de meninos e meninas. “A sociedade tem que ser mais igualitária na base. Se tivermos o Centro de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSi) para cuidar de algum adolescente que eventualmente tiver um surto ou uma vinculação muito precoce com uso de drogas, e se fizermos uma intervenção casada com a escola e a família, teremos avanços”.
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