Foi com muita honra que recebi o convite do professor Otávio Luiz Rodrigues Júnior para integrar a Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo e colaborar nesta coluna dedicada a refletir o desenvolvimento do Direito Privado na atualidade, de forma crítica e científica. Como isso não pode ser feito sem voltar os olhos além dos confins de nossas fronteiras, como a coluna semanal de Direito Comparado há tempos sinaliza, resolvi, nessa primeira contribuição, trazer ao conhecimento e reflexão do leitor recentíssima decisão do Superior Tribunal de Justiça da Alemanha, Bundesgerichtshof (BGH), que provocou acesa polêmica no meio médico e jurídico nas últimas semanas.
Em decisão proferida no dia 28 de janeiro, o 12a Senado Cível do conceituado tribunal, nos autos de processo oriundo do Tribunal de Hannover, reconheceu, em tese, a possibilidade do indivíduo concebido por reprodução heteróloga, na qual o material genético não provém – total ou parcialmente – dos pais, mas de terceiro doador anônimo, conhecer a identidade civil (não apenas genética) de seu genitor.
No caso, duas crianças, nascidas em 1997 e 2002, representadas por seus pais legais, processaram a clínica de reprodução assistida onde a mãe realizou a inseminação, questionando a identidade do pai biológico. A clínica recusou-se a fornecer a informação, alegando o direito ao anonimato do doador do sêmen e também que seus pais renunciaram expressamente, em declaração registrada em cartório, à revelação posterior da identidade do doador. Aduziu ainda que a identificação do pai representaria a falência do sistema de reprodução heteróloga, pois ninguém doaria sêmen diante do risco de responder pela filiação biológica no futuro em decorrência da revelação da identidade do doador.
Em primeiro grau, a ação foi julgada improcedente ao argumento de que menores só podem exercer esse direito ao conhecimento de sua ancestralidade após 16 anos, quando têm mais maturidade para avaliar as consequências desse importante passo. O Tribunal de Hannover aplicou por analogia a regra do § 63 I da Personenstandsgesetz (PStG), a lei sobre a origem pessoal, válida para os casos de adoção.
Os menores, então, recorreram ao BGH por meio da Revision e o tribunal afirmou que o direito ao conhecimento da própria origem consiste em um dos direitos fundamentais da personalidade, decorrência imediata da dignidade humana e, portanto, protegido pelos arts. 1º e 2º da Lei Fundamental (Grundgesetz). E esse direito, por vezes, mostra-se essencial ao pleno desenvolvimento da personalidade. Aqui, deve-se observar que o BGH não se refere apenas ao conhecimento das informações genéticas do doador, mas de sua identidade civil. Por isso, a criança tem, independente da idade, uma pretensão juridicamente tutelada contra a clínica de reprodução assistida, onde a inseminação artificial fora realizada, para saber a identidade do doador do sêmen.
Esse direito não é absoluto, segundo o BGH, afinal existem muitos interesses em jogo, daí a necessidade de se ponderar no caso concreto todos os interesses legítimos envolvidos. O maior deles é, na sequência, o direito ao anonimato do doador de sêmen, que decorre de outro maior, o direito à autodeterminação – na expressão do tribunal, direito à autodeterminação informativa (Recht auf informationelle Selbstbestimmung) – também de status constitucional, que lhe confere o poder de planejar e regular sua vida particular, o que inclui evidentemente o planejamento familiar.
É evidente que o doador de espermatozoides ou óvulos, ao disponibilizar seu material genético aos bancos, não deseja assumir como filho a criança gerada. Ele doa – ou vende, como na Alemanha e nos EUA – seu material genético para que outros possam ter filhos e, dessa forma, realizar um projeto de vida. E fazem confiados no anonimato e na certeza de que não serão responsáveis por essa(s) criança(s). A quebra do anonimato, decorrente do reconhecimento do direito de conhecer a identidade do pai/mãe biológico, inviabiliza o sistema de inseminação heteróloga, pois poucos se arriscarão a doar sabendo que no futuro alguém pode bater em sua porta pedindo o reconhecimento da paternidade e todos os direitos daí decorrentes, como alimentos e herança.
Isso se torna ainda mais problemático na Alemanha, onde a descoberta da paternidade biológica permite ao filho requerer a desconstituição da paternidade do pai afetivo (legal) e a consequente constituição da paternidade biológica. Por isso, ressalta o BGH que também precisam ser considerados os impactos dessa informação na vida do doador.
O mesmo se diga em relação aos interesses dos pais legais que, na maioria das vezes, ainda quando não escondam a origem biológica do filho, não querem dividi-lo e muito menos perdê-lo para terceiro estranho. Afinal, a criança é fruto de um projeto parental baseado no afeto, que transcende os laços da consanguinidade. Disso se percebe o quanto a descoberta da origem biológica pode gerar sérias complicações para os núcleos familiares envolvidos. Deve-se, por fim, ainda levar em conta os interesses da clínica de reprodução, especialmente o dever de sigilo profissional, garantido na Lei Fundamental, que aqui merece tutela sempre quando exercido para proteção de terceiro (doador ou pais legais).
O BGH fez questão de ressaltar que o que menos conta no caso são interesses meramente patrimoniais, seja de que parte for. Por isso, considera necessária a demonstração da real necessidade (Bedürfnis) ou interesse da criança em ter acesso à informação almejada, donde se conclui, a contrario, que essa informação poderá ser negada quando da análise geral do contexto fático resultar inequivocamente que a pretensão foi movida por fins meramente financeiros, desde que não merecedores de proteção. Há, portanto, uma complexa constelação de sensíveis interesses a serem ponderados no caso concreto, tarefa da qual não se desincumbiu o tribunal a quo, justificando a devolução dos autos para nova apreciação.
Interessante observar ainda ter o BGH salientado que a renúncia dos pais legais ao conhecimento da identidade do doador do sêmen, feita antes da celebração do contrato com a clínica de reprodução, visando garantir o anonimato do doador, não afeta o direito da criança, posto nula, vez que o ordenamento jurídico não admite contratos em prejuízo de terceiros. Segundo a corte, o direito à informação resulta ainda do princípio da boa-fé objetiva (Treu und Glauben), consagrada no famoso § 242 do BGB, brotando dentro do campo normativo de proteção, surgido em torno do contrato médico – o que reforça a impossibilidade das partes afastarem, de comum acordo, os deveres de consideração, decorrentes da boa-fé objetiva.
Tese controversa
A decisão tem sido alvo de pesadas críticas. A principal, naturalmente, é que isso irá reduzir drasticamente – quiçá por fim – as doações de sêmen e óvulos nas clinicas de reprodução humana, pois mesmo na Alemanha, onde pode ser remunerada, o doador não ganha mais que 100 euros. Naturalmente, isso tem sido lucrativo: muitos estudantes, em busca de um dinheirinho extra, chegam a embolsar 2.600 euros por ano com doações, algo em torno de R$ 8.436. Entretanto, considerando o risco de um futuro reconhecimento de paternidade, a doação vai perder seu atrativo financeiro.
Outra crítica que se faz é que a questão precisa ser regulada em lei específica, que proteja com mais eficiência o doador de sêmen, sob pena de falência do sistema de reprodução artificial heteróloga. Na maioria dos países europeus, as crianças nascidas através de procedimentos desse tipo não têm o direito de impugnar a paternidade do pai legal, o que seria mais benéfico ao sistema, já que os doadores estariam protegidos pelo menos patrimonialmente. No momento, parece haver apenas um consenso: doar sêmen pode sair caro no futuro!
No Brasil, a técnica de reprodução assistida é disciplinada pela Resolução do Conselho Federal de Medicina e pela Resolução-RDC 23/2011 da ANVISA, que fixam a gratuidade da doação, o sigilo e anonimato do doador. As clínicas de reprodução são, da mesma forma que na Alemanha, obrigadas a manter e guardar, sob absoluto sigilo, em banco de dados permanentes, as informações dos doadores anônimos. Essas informações só podem ser disponibilizadas excepcionalmente por razões médicas, resguardada a identidade civil do doador.
A doutrina diverge quanto à possibilidade do filho – e do pai – buscar o reconhecimento da paternidade biológica. A opinião majoritária aponta a necessidade de manter o anonimato do doador do material fecundante, sob pena de inviabilizar a própria utilização da técnica, entendimento seguido pelos tribunais que já se manifestaram a respeito da problemática, ainda que tangencialmente.
Esse, de modo geral, também é o entendimento dominante na maioria dos países europeus. A decisão alemã representa, nesse sentido, um rompimento de paradigma em prol do fortalecimento da dignidade do ser humano diante das inovações na Bioética e no chamado Biodireito. Ainda não dá para avaliar os reflexos que essa tendência alemã terá sobre os países influenciados pelo vigor da doutrina germânica, que consegue como poucas conjugar justiça e cientificidade, sem desaguar em discursos inflamados (e vazios) em prol da dignidade humana, tão referenciada e tão pouco concretizada aqui nos trópicos.
Significativo, nesse sentido, o fato do BGH ter buscado no código civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch – BGB) uma justificativa para a solução do caso, mesmo diante de direito fundamental relacionado intimamente com a personalidade e dignidade humanas. E não poderia ser diferente, afinal estavam em jogo no caso concreto figuras elementares do Direito Privado, como o contrato (clínica/doador e clínica/pais) e o direito à informação, cujas raízes estão fincadas substancialmente no princípio da boa-fé objetiva.
Ao embasar sua decisão no BGB, o tribunal lembra que entre os fatos e a Lei Fundamental existe um código civil, plenamente apto a dar solução ao caso. Um recado a ser ouvido do outro lado do Atlântico pelos colegas brasileiros que, incentivados por alguns civilistas, recorrem à Constituição para solucionar qualquer problema. Depois reclamam quando casos banais como o do pão de queijo mofado chegam ao STF...
Karina Nunes Fritz é professora da FGV Rio.
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