POR Carla Rodrigues
Carla Rodrigues | 11.03.2015
Há muito tempo tinha desistido de comemorar, homenagear, escrever ou falar sobre o Dia Internacional da Mulher. Há pelo menos uma década venho tentando ignorar a data, tomada por ações publicitárias de mau gosto e muitas vezes meras repetições do preconceito e da discriminação contra o qual o 8 de março pretende lutar. A escolha do verbo – lutar – é sempre difícil numa frase, porque ele, o verbo, designará certa escolha política, ideológica, enfim, uma opção por um tipo de discurso ou abordagem. Se dissesse que o 8 de março pretende lembrar o preconceito e a discriminação contra a mulher, estaria, eu também, esvaziando a data do seu significado para torná-lo uma simples rememoração de como foram violentos os preconceitos do passado. Esta é uma das estratégias conservadoras contra as mulheres: afirmar que a discriminação já faz parte da história e que hoje, na segunda década do século XXI, aquilo que nos inferioriza já foi superado. Não foi.
Sinais da força gritante desses discursos conservadores me fizeram decidir voltar ao tema da opressão contra a mulher – daí a escolha do verbo lutar. Exemplos colhidos nas últimas três semanas de noticiário dão conta da atualidade da causa e da necessidade de resistência, outra palavra que não foi escolhida por acaso. O direito de resistência é o direito à desobediência legítima, categoria jurídica prevista no interior da lei. Desobedecer, como lutar, é um verbo a ser conjugado todos os dias por nós, mulheres. Desobedecer a normas sociais invisíveis, não escritas, e que, no entanto ou por isso mesmo, carregam o peso maldito da tradição, é ainda mais difícil.
No noticiário, uma jornalista diz que a presidente da República dá trabalho e inventa muita coisa para o seu ministério porque não é casada nem tem filho para cuidar. A invisibilidade da regra aqui está na pressuposição de que existe um modelo a ser seguido, o da mulher dona de casa e mãe, cuja prioridade “normal” deve ser a família e os filhos. O trabalho, mesmo que seja a tarefa de presidir um país, estaria necessariamente em segundo lugar. Não por acaso, os ataques da oposição são xingamentos pessoais. Uma mulher – mesmo que seja presidente da República – está sempre exposta a essa violência por razões de gênero, para usar a expressão jurídica e me referir ao projeto de lei que acaba de tornar a violência contra a mulher um tipo de agravante no direito penal.
Sancionado pela presidente da República, o feminicídio tornou-se circunstância qualificadora do crime de homicídio. Para o bem da política, poderia se encontrar algum similar que coibisse manifestações de ódio e preconceito que, a pretexto de fazer política, estão expressando o pior da misoginia na sociedade brasileira. Não, não é natural, nem democrático, nem forma de protesto, nem liberdade de expressão chamar nenhuma mulher de “vaca” ou “vagabunda”, seja quando uma mulher está andando na rua e pode ser abordada assim por um desconhecido, seja batendo panelas contra a mulher que ocupa o mais alto posto de comando no país.
Enquanto estivermos fazendo de conta que o preconceito é invencível, ele nos vence em episódios terríveis e inclassificáveis como a morte de Peterson Ricardo de Oliveira, 14 anos, filho adotado por um casal homossexual e espancado numa escola da periferia de São Paulo. Preconceito, discriminação, racismo, misoginia matam. Mulheres, que há séculos são vítimas da violência de gênero; homossexuais, alvo de manifestações de homofobia que podem levar à morte; adolescentes como Peterson; mas, sobretudo, matam a nossa capacidade de nos tornarmos uma sociedade igualitária. É disso que, no final das contas, trata o Dia Internacional da Mulher, instituído há 40 anos pela ONU, cujas conferências internacionais desde então têm sido palco de acalorados debates sobre direitos iguais. A cara do século XX, como disse o historiador Eric Hobsbawm, foi radicalmente modificada pela emancipação das mulheres. Ao século XXI resta a tarefa de fazer a passagem da emancipação para uma igualdade radical e sem tréguas.
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