4 mar 2015
“Por favor, me deixa. Não me pergunta mais nada sobre isso. Eu queria esquecer”. Este relato de uma menina de 8 anos, registrado em um dos processos da Delegacia de Proteção da Criança e do Adolescente de Goiânia, retrata a dor de crianças vítimas de abuso sexual, submetidas a interrogatório e abre o livro Depoimento Sem Medo (?) – culturas e práticas não-revitimizantes: uma cartografia das experiências de tomada de depoimento especial de crianças e adolescentes, uma realização da Childhood Brasil. Escrita por Benedito Rodrigues dos Santos e Itamar Batista Gonçalves, a obra propõe experiências alternativas na tomada de depoimentos de crianças e adolescentes, vítimas ou testemunhas de violência sexual, e também reafirma o direito de que suas vozes sejam respeitadas e valorizadas como prova testemunhal.
O principal objetivo é evitar a revitimização de meninas e meninos, que ainda ocorre com frequência nas tomadas de depoimentos convencionais nas delegacias. O livro é resultado da análise de relatos feita pela equipe de pesquisa do projeto “Invertendo a rota: ações de enfrentamento da exploração sexual infantojuvenil em Goiás”, coordenado pelo professor Benedito Rodrigues dos Santos, e também do projeto “Culturas e práticas não-revitimizantes: reflexão e socialização de metodologias alternativas para inquirir crianças e adolescentes em processos judiciais”, realizado pela Childhood Brasil e a Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude (ABMP). A iniciativa também contou com o apoio da Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República (SDH) e do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).
As crianças enfrentam um conflito de sentimentos e estresse psicológico, que passa por vergonha, medo, raiva e ressentimento, ao terem que reviver o trauma da violência quando são obrigadas a relatar o ocorrido várias vezes durante a investigação. “Preocupados com este problema, Itamar Gonçalves, Coordenador de Programas da Childhood Brasil, e eu, resolvemos desenhar um projeto juntos para que elas pudessem ter um depoimento mais humanizado”, conta Benedito.
Segundo a publicação, as experiências mais relevantes de depoimentos alternativos estão na Europa (28%), América do Sul (28%) e Ásia (16%), predominando dois modelos principais: o sistema inglês de Closed Circuit of Television (CCTV), com depoimentos por meio de circuito fechado de TV e gravação de videoimagem (64%); e o americano, com a utilização de Câmara Gesell (36%). O CCTV é o sistema mais utilizado e evita o contato da vítima com o grande público nos tribunais e ela também poderá estar acompanhada de uma pessoa enquanto presta seu testemunho.
A Câmara Gesell é um dispositivo norte-americano, usado por duas salas divididas por um espelho unidirecional, que permite visualizar a partir de um lado o que acontece no outro, mas não vice-versa. Crianças e adolescentes são ouvidos pelas autoridades judiciais, empregando escuta especializada, realizada unicamente por um psicólogo. Durante a tomada de depoimento, o trabalho desse profissional direciona-se à obtenção de um relato confiável, que possa ser aceito com credibilidade visando constituir prova testemunhal no processo. As salas devem estar equipadas com aparelhos eletrônicos para registro de áudio e imagem.
O livro também aponta que as práticas tradicionais judiciais raramente punem o abusador, por não considerarem os relatos das crianças.
“Os baixos índices de punição dos criminosos deve-se à falta de prova material. Lutamos para que a voz da criança seja considerada nos casos de violência sexual. Na medida em que ela se revela, aumentam os índices de responsabilização”, afirma Benedito.
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