30/11/2015 06h01 - por Letícia González
Violentadas por namorados e maridos, vítimas perderam dentes e tiveram ossos da boca quebrados. Com ajuda de ONG, reconstruíram o sorriso e a vontade de viver; veja antes e depois
Na manhã do último dia 25 de outubro, a recepcionista Regiane Oliveira, 40 anos, quebrou o silêncio de uma sala cheia de adolescentes numa escola da região central de São Paulo. “Todo mundo virou pra me olhar”, conta. É que, assim que abriu sua apostila do Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio, a paulista, que no dia usava cabelo curto estilo Joãozinho e batom cor de café, deu uma risada alta. Pudera. Este ano, o Ministério da Educação propôs para a redação um assunto de seu inteiro conhecimento: a violência contra a mulher.
Outro silêncio, bem mais pesado, Regiane rompera três anos antes, quando contou a uma psicóloga de um centro social o que sofria nas mãos do irmão, viciado em drogas. De tanto receber chutes e socos, perdera os dentes da frente e mergulhara num ostracismo cruel: sem trabalho e sem amigos, quase não saía de casa. “Me penteava pela sombra, para não olhar no espelho. Minhas filhas pediam que eu ficasse calada nas reuniões da escola.”
Foi com um “hum hum” que ela disse a uma assistente social querer, sim, participar de uma seleção para tratamento dentário. Os custos seriam pagos pela Turma do Bem (TdB), ONG que reúne 16 mil dentistas no país e que foca no atendimento gratuito a jovens de 11 a 18 anos.
Em 2012, a entidade passou a beneficiar também mulheres vítimas de violência doméstica por meio do projeto Apolônias do Bem, e foi assim que a vida de Regiane mudou. Com a arcada reconstruída, ela se tornou recepcionista da ONG e retomou os estudos – quer fazer faculdade de serviço social e poder, assim, ajudar outras vítimas.
Das 4.762 mulheres assassinadas no Brasil em 2013, mais da metade morreu pelas mãos de um familiar direto. Nos hospitais e postos de saúde, no ano passado, outras 127 mil feridas tiveram a coragem de dizer quem as machucou: homens que deveriam amá-las.
Os dados mostram que, enquanto o crime organizado mata rapazes nas ruas como numa guerra civil, o massacre feminino ocorre em casa. Segundo o Mapa da Violência, levantamento feito pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz e divulgado no mês passado, o país é o quinto mais perigoso para as mulheres. Só não somos piores que El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia.
Em seu terceiro ano, o Apolônias já reconstruiu a dentição de 650 mulheres. Seu fundador, o dentista Fábio Bibancos (que conta com amigos como Luciano Huck, Ana Paula Arósio e Fábio Assunção para catapultar a popularidade de sua ação), diz que ainda é pouco para a realidade brasileira.
“O Estado deveria fazer isso. Não há trabalho psicológico que resolva a marca de uma porrada na boca.” Os resultados são contundentes como as imagens destas páginas, que mostram diferentes momentos de seis contempladas pelo projeto. A seguir, um pouco de suas histórias.
Marilene Moreira dos Santos
45 anos, faxineira
“Meu namorado tinha 21 anos e eu, 14. Na primeira vez que avançou em mim foi de supetão, na volta do trabalho, e não parou mais. Ele me batia e me deixava trancada em casa por semanas. Na rua, me puxava pela mão como se eu fosse uma coisa – eu só podia caminhar ao seu lado. Aos 17, num ato de desespero, me joguei de um ônibus em movimento para me suicidar. Lembro do olhar fulminante que ele me deu quando, no hospital, o médico perguntou o que havia ocorrido.
Sempre gostei de bolos e, numa noite de São João, fui com a prima dele a uma quermesse comer um pedaço. Ele sabia, mas ficou irritado. Quando voltei, me esperava com um doce de chocolate sobre a mesa e um pau para me bater. A cada golpe, esfregava na minha boca um naco do bolo, que ia se misturando com sangue. Só consegui fugir cinco anos depois, aos 19, quando ele esqueceu a porta aberta e eu corri para a casa da minha mãe. Brigamos pela guarda dos nossos filhos [Fernando, hoje com 25, e Fernanda, 23] na Justiça. Ele acabou criando meu menino.
Conheci meu atual marido há dois anos e, às vezes, não sei lidar com tanto carinho que recebo. Nunca tive isso na vida! Quando me pediu em casamento, respondi que só aceitaria se um dia tivesse meus dentes de volta. Isso aconteceu em setembro, graças ao trabalho da ONG. No último dia 22, meu aniversário, nos casamos.”
Claudiane Rosa Ângelo
37 anos, babá
“Não gosto de falar das agressões que sofri. Fiquei deprimida por muito tempo e, ainda hoje, uma grande tristeza me invade. Tive um casamento bom até que, depois de muitos anos juntos, meu ex começou a beber. As brigas se tornaram frequentes e evoluíram para o físico. Meus dentes foram ficando frouxos e precisei arrancálos, um por um. É ruim demais não ter vontade de levantar da cama e passar o dia em casa, sem forças. Já fui chamada de preguiçosa por isso.
Só acreditei que teria meu sorriso de volta quando, três meses atrás, sentei na cadeira da dentista voluntária. Não foi fácil. O molde inicial não encaixou, pois o osso do meu céu da boca estava todo quebrado e foi preciso reconstruí-lo por inteiro. Passei por uma cirurgia, me alimentei de sopas e tive muita, muita dor. Mas tudo valeu a pena. Ainda estou desempregada e não vejo a hora de voltar a ser babá.”
Ruth Orozco
36 anos, costureira
“Saí da Bolívia com meu marido aos 21 anos rumo ao Brasil. A proposta parecia boa: trabalhar numa oficina de costura em São Paulo, terminar os estudos e ter moradia garantida. Era tudo mentira. Quando chegamos, o casal de bolivianos que nos ‘contratou’ confiscou nossos documentos, me colocou na cozinha e nunca nos pagou.
As jornadas de trabalho duravam mais de 16 horas. Quando saía do fogão, me unia ao pessoal das máquinas de costura. Engravidei da nossa primeira filha nesse ambiente e não tinha permissão para ir ao médico nem telefonar para minha família. Tentaram me estuprar mais de uma vez, quando meu marido estava longe. Me defendia aos gritos e, uma vez, até com um cabo de vassoura.
‘Você se maquia demais’, disse a dona do local quando reclamei dos abusos. Passei a andar suja, desarrumada. Ganhei algumas cáries e, assim, vi meu sorriso se esburacar. Fiquei sete anos trabalhando como escrava. Conseguimos sair depois de uma pequena greve, quando a oficina já se desmantelava, após várias revoltas.
Em 2015, ganhei minha nova dentição. Por causa da violência, nunca mais quis ter um patrão. Hoje trabalho sozinha, costurando e desenhando roupas com meu estilo.”
Lauriete Martins
62 anos, aposentada
“Quando nos conhecemos, meu atual marido pensou ter causado uma péssima impressão em mim. É que eu estava monossilábica, sem olhar nos olhos dele nem sorrir. Era o meu jeito, eu dizia. Mas não era. Depois de muitas tentativas, ele matou a charada. ‘Você não fala comigo porque não tem dentes.’ Era isso mesmo. Recuperá‑los este ano foi essencial para minha autoestima, mas não só. Passei também a mastigar a comida e, em menos de dois meses, emagreci 6 quilos. Isso ameniza minhas dores nos quadris.
A falha que eu tinha na arcada era só uma das marcas que meu primeiro marido deixou. Foram 26 anos de abusos constantes, seguidos de ameaças de morte caso eu o denunciasse. Ele tinha um ciúme doentio, capaz de destruir a casa (e a mim) por um batom. Quando desenvolvi um câncer no útero, prestes a completar 40 anos, passei a recusá-lo na cama, o que o enfureceu. Ele dizia que eu estava dormindo com outros homens.
A pior surra foi planejada, com tapumes pregados nas janelas para que ninguém pudesse me socorrer. Quando voltei do trabalho sem perceber a armadilha, me atacou. Ele bateu na minha cabeça com um martelo e tomou remédios para se suicidar. Depois disso, consegui dar um basta final. Ele passou os nove anos seguintes pedindo para voltar. Não quero nunca mais vê-lo.”
Maria do Carmo Ferreira
66 anos, revendedora
“Meu pai era mau. Quando nasci, em Quipapá, no interior de Pernambuco, impediu minha mãe de me alimentar. De tanto berrar de fome, chamei a atenção da vizinha, que implorou para cuidar de mim. ‘Joga num poço’, disse ele. Sobrevivi e, aos 5 anos, mudei com toda a família para São Paulo. Aos 14, meu pai me obrigou a casar com um homem muito mais velho.
Tive seis filhos com esse carrasco, sob pancadas e ameaças de morte. Ele me jogava na parede e eu rezava para não cair no chão, pois seria o meu fim. A irmã dele morava ao lado e o incitava: ‘Mata ela, mata ela!’. Eu me defendia com pedaços de madeira que usava no fogão a lenha. Saía de casa com meus filhos e caminhava quilômetros para fugir. Ele nos achava e mandava voltar, com o revólver na cintura.
No início de 2015, consegui provar as agressões e um oficial de Justiça o expulsou da minha casa. Me senti um bebê, nascendo de novo. Pulava de alegria. Quando fiz o tratamento, em setembro, chorei ao ver meus dentes no espelho. Pensava: ‘Meu Deus, será que morri ou estou sonhando?’.”