O que o caso de Pedro Paulo e Alexandra nos ensina sobre relacionamentos em que a violência vira parte da vida
IVAN MARTINS
13/11/2015
Mesmo sendo péssimo em prever o futuro, aposto que Pedro Paulo Carvalho não será prefeito do Rio de Janeiro. Talvez nem seja candidato na eleição do ano que vem. Num país em que 52% dos eleitores são mulheres, e no qual o movimento feminista é cada dia mais ativo, qual a chance de um candidato que tem na biografia dois boletins de ocorrência por agressão contra a mulher ser eleito? Nenhuma, eu gosto de imaginar.
Dito isso, a entrevista coletiva que Pedro Paulo e a ex-mulher deram ontem no Rio de Janeiro me fez pensar sobre um assunto que anda circulando a meu redor: os relacionamentos disfuncionais e os relacionamentos abusivos, que são coisas inteiramente diferentes.
Os boletins de ocorrência lavrados pela mulher de Pedro Paulo sugerem um relacionamento abusivo: um marido que volta e meia perde a paciência com a mulher e, no calor da discussão, covardemente, a espanca de quebrar dentes. Parece um caso simples de homem agressor.
Na entrevista de Alexandra Marcondes e Pedro Paulo surge outro quadro. As discussões, nas palavras dela, aparecem como “tristes episódios” e ex-marido como um homem que “não é agressivo”. Suspeito que jamais saberemos as razões que levaram Alexandra a dar esse depoimento, mas ficou evidente que ainda há uma parceria entre ela e o ex-marido. Por quê?
Na entrevista que dera sozinho à Folha, na semana passada, Pedro Paulo insinua que a mulher também o agredia: “Tivemos discussões e agressões mútuas. Acho que não cabe a gente falar: ‘Ah! Ela me agrediu e eu me defendi’”. Pareceu apenas uma mentira, como foram as suas tentativas anteriores de esconder e negar a agressão. Ou de jurar, depois, que acontecera apenas uma vez, algo que ÉPOCA desmentiu. Mas a aparição solidária de Alexandra ao lado dele, ontem, abre a possibilidade de que Pedro Paulo estivesse de alguma forma dizendo a verdade – embora isso não mude a sua situação.
Dizer que ambos “perdiam o controle” e que a mulher também o agredia não justifica – nem aos olhos da lei, nem diante do eleitorado – que ele revide com socos e pontapés, a ponto de quebrar um dente dela. Dada a desproporção de forças, a covardia continua sendo enorme e o ato, injustificável. Ponto.
Embora possa ser falsa no caso dele e de Alexandra, a situação que Pedro Paulo descreve existe na vida real. Há casais que se agridem o tempo inteiro. Verbalmente, simbolicamente, fisicamente. Isso se chama relacionamento disfuncional. É uma espécie de parceria na violência. Nela, a mulher leva a pior fisicamente, mas não se afasta porque a dinâmica do relacionamento é essa: discussões, agressões, drama e reconciliação.
Quem nunca teve na vizinhança ou na família um casal que dava espetáculo a cada 15 dias? Primeiro eles se insultam aos berros, depois quebram tudo, então começam os tapas e – logo em seguida – os pedidos de socorro dela, aos gritos. Logo um vizinho intervém ou alguém chama a polícia e a coisa se acalma, com lágrimas e declarações de amor. Noites depois, recomeça. Acontece nas melhores vizinhanças e às vezes degenera em morte.
Enquadrar esses casos disfuncionais na categoria de violência contra a mulher faz sentido legal e ético, mas não descreve a complexidade psíquica da situação.
A dinâmica interna dessas relações é violenta. Ou tornou-se violenta pelas circunstâncias. São relacionamentos degradados em que os ataques mútuos – físicos ou não - funcionam como uma forma de comunicação e aproximação possível. Talvez a única. Na ausência de respeito e de carinho, prevalece a linguagem da provocação. Ela se repete com descontrole cada vez maior, até que a violência física se instala. Um amigo bastante cordial cujo relacionamento havia chegado a esse limiar me disse uma frase que resume tudo: “Saí de casa antes de fazer uma bobagem”. Muita gente só sai depois, para depor na delegacia.
Mais importante do que arrumar culpados ou discutir quem começou - a gente sabe, sem qualquer ironia, que os homens que erguem a mão tornam-se culpados - é alertar as pessoas para os riscos dessas relações turbulentas. Sobretudo os jovens. Eles simplesmente não sabem como isso é grave e a que ponto a situação pode chegar.
Garotas e garotos ainda acreditam, tolamente, que “faz parte” da paixão o descontrole e a agressão. Quando eu estava na faculdade, lembro de ouvir, estupefato, uma amiga contando que havia levado um tapão do namorado depois de arranhar “toda a cara dele” durante uma briga. Ela estava orgulhosa da “intensidade” da relação deles. Tinha 20 anos e se sentia num filme. Assim começam essas coisas. Terminam na delegacia, anos depois. Ou pior.
Muitos meninos acham natural "sacudir", "empurrar" ou "segurar o braço" da namorada num momento de irritação. E algumas delas acham que é aceitável "avançar" sobre o namorado no meio de um bate boca, ou atirar contra ele as coisas que estão à mão. "Ah, a gente se gosta", dizem. Mas qual é a o limite entre "sacudir", "empurrar" e "avançar" e uma agressão de verdade? Nenhum. Isso tudo é agressão e tem de ser banido, sob o risco de degenerar em baixarias ainda maiores.
É importante também entender o tipo de relação esquisita em que a gente pode estar metido.
Relacionamentos disfuncionais são diferentes de relacionamentos abusivos porque neles os papéis de vítima e algoz não estão claramente definidos. Não é o namorado ou marido controlador que submete a mulher pelo uso de violência física ou psicológica sistemática. Nos relacionamentos disfuncionais, o casal de alguma forma estabelece a agressão mútua como linguagem e parte do convívio. A mulher, por ser mais fraca, acaba sendo machucada ou morta, mas ela também agride. Num caso é necessário chamar a polícia, afastar o agressor e proteger a vítima. No outro, um psiquiatra é mais apropriado. Ou um juiz, para oficiar a separação.
Diferenciar uma coisa da outra não serve de álibi para homens agressores, mas ajuda a entender melhor a vida real.
Às vezes, as pessoas estão metidas em relações que não cabem numa descrição simples de mulher boa e homem mau. Ou o inverso. Às vezes, todo mundo é “normal”, mas a interação é patológica e faz com que ambos ajam como psicopatas. É preciso entender quando esse se tornou o caso e afastar-se, rapidamente.
Amor não comporta tapas na cara, arranhões, louça quebrada e grosserias. No amor não cabem socos e pontapés, mesmo desferidos por mulheres frágeis. Jamais por homens. Se a gente começar a achar que a violência física “faz parte”, corre o risco de acabar como Pedro Paulo e Alexandra – tendo de explicar, em público, que um homem que bateu duas vezes na mulher, aos socos, “não é violento”, e que dois boletins de ocorrência registrados na delegacia, com dois anos de intervalo entre eles, não informam nada sobre o sujeito ou sobre a vida do casal. Tudo isso pode ser verdade ou apenas teatro político, mas é degradante. Não melhora a biografia de nenhum dos dois. E, se houver justiça, tampouco renderá votos.
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