por Joana Leal
Socióloga e estudiosa do movimento feminista e dos direitos humanos, a professora Eva Blay fala sobre violência, relações de gênero e casamento
No mês de outubro, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 5069, de autoria do deputado Eduardo Cunha, que dificulta o acesso legal ao aborto para mulheres vítimas de estupro. O mesmo texto pretende impedir a distribuição da pílula do dia seguinte pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A medida levou milhares de mulheres às ruas em protestos a favor dos direitos humanos e contra o teor machista expresso pela iniciativa. Grande parte das manifestações foi encabeçada por movimentos feministas, grupos que lutam pela equidade de direitos entre homens e mulheres.
O movimento feminista tem um dos seus principais marcos na década de 1960, impulsionado pela luta por uma legislação que retirasse do homem o direito de subordinar a mulher. Eram os anos em que iniciava-se a liberação sexual pela introdução dos métodos contraceptivos. Esse momento histórico é o ponto de partida da pesquisa 50 anos de feminismo (1965-2015): novos paradigmas, desafios futuros, apoiada pela FAPESP e realizada pela professora Eva Alterman Blay, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, em parceria com a professora Lucia Merces de Avelar, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
O objetivo do trabalho, ainda em andamento, é avaliar em que medida as demandas dos movimentos feministas são traduzidas em ações na política institucional, mais especificamente, em legislação federal ou nacional, na Argentina, no Brasil e no Chile. Durante a investigação, foi possível constatar que esses grupos foram muito importantes no avanço de políticas públicas: mesmo as mulheres representando uma minoria nos órgãos governamentais, uma série de avanços aconteceram, por exemplo, mudanças no código civil, o direito ao aborto, nos casos previstos em lei; o aumento no número de creches; e políticas que penalizam ações relacionadas ao assédio e estupro. “Os movimentos sociais feministas introduziram uma nova linguagem: direitos sexuais e reprodutivos, direito ao voto, saúde integral da mulher. Tudo isso não existia”, explica a professora Eva Blay, fundadora do Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero (NEMGE) da FFLCH.
Direitos humanos e ações mediadoras
Na pesquisa também são avaliadas as instâncias mediadoras, ONGs que atuam levando os interesses da população para o Senado Federal e para a Câmara dos Deputados. Um dos casos mais conhecidos em que uma dessas entidades esteve presente é a criação da Lei nº 11.340, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, que visa aumentar o rigor das punições de crimes contra a mulher, inclusive os domésticos. Após ser agredida durante 23 anos pelo marido e ficar paraplégica, Maria da Penha Maia Fernandes, com o apoio do Centro pela Justiça pelo Direito Internacional e do Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem), fez uma denúncia formal à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA e conseguiu que a lei fosse elaborada.
Eva Blay | Foto: Dario Luis Borelli / Divulgação IEA |
A instauração da Lei Maria da Penha, lembra a professora Eva Blay, se deu pois “o Brasil seria punido pela OEA se não adotasse medidas para penalizar as agressões que estavam acontecendo”. Ela acredita que houve consideráveis avanços em relação às décadas passadas e que conquistas estão, aos poucos, sendo alcançadas, mas que é importante manter-se firme na luta. “O que eu acho mais grave são os quadros pelos quais nós passamos de progresso e regressão. Consegue-se avançar, mas as forças conservadoras aparecem com algo como o Projeto de Lei 5069. Portanto, nós temos que continuar lutando independente dos avanços, sobretudo para manter o que já foi conquistado”, defende.
Para a socióloga, a violência que insiste em se fazer presente em casamentos e relações conjugais é creditada ao patriarcalismo mantido ao longo dos anos. A pesquisadora discute o assunto em seu trabalho Véu e grinalda: a persistência da violência nas relações sociais de gênero no casamento contemporâneo, apoiado pela CNPq. “A mulher quando se casa traz uma mentalidade romântica, porque ela foi criada desse modo – a educam para que pense que o casamento é a felicidade completa. Para os homens a concepção não é tão diferente, mas eles atrelam essa relação a outros aspectos, como dominação, força e poder” pontua.
A principal questão enfrentada hoje, relata, é o desrespeito aos direitos humanos, porque as mulheres, na prática, não são tratadas da mesma forma que os homens. A prova disso, menciona, são alguns problemas tradicionais que perduram até hoje, como o alto número de mulheres que são assassinadas por seus companheiros e o sentimento de posse que alguns homens têm sobre os corpos das mulheres. Em sua pesquisa, ela se deparou com casos de garotas que foram agredidas em festas simplesmente por se recusarem a dançar com algum rapaz. “Essas situações acontecem porque existe um imaginário de que as mulheres são obrigadas a ceder às vontades dos homens, colocando-as em uma posição de sujeição”, afirma. “Isso mostra que elas não possuem a plenitude dos direitos humanos, caso contrário não seriam violentadas, assediadas e escravizadas”, completa. Dessa maneira, ela garante que a intenção não é ter direitos a mais, apenas os mesmos direitos que todos, sem distinção de cor, gênero ou classe social.
Na obra Feminismos e Masculinidades – Novos caminhos para enfrentar a violência contra a mulher, fruto de um seminário coordenado por Eva Blay, são registradas práticas que corroboram com quadros de desigualdade de gênero. “No livro, nós mostramos como os homens são educados para uma exacerbação da masculinidade, sendo pressionados pela sociedade a adotarem posturas que não condizem, em muitos casos, com sua vontade”, elucida. “Desde pequenos, os meninos são ensinados a não brincar de boneca, com vestidos ou coisas cor de rosa, mas qual o problema nisso? Nós precisamos estar abertos para o mundo e novas experiências, além, é claro, de desconstruir diariamente pensamentos assim” conclui.
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