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sábado, 21 de novembro de 2015

Uso de processos judiciais sobre crianças pode encobrir interesse dos adultos


Muito se faz, se diz e se tenta fazer, em nome das crianças. Atendemos a alguns de seus desejos até mais do que se fossem nossos próprios desejos, delas cuidamos como gostaríamos ter sido cuidados, por elas fazemos o que gostaríamos que conosco tivesse sido feito. Sem dúvida, esse é um amor altruísta próprio aos adultos.

Mas, noutras situações, saindo do lugar de adultos, muitas vezes e mesmo sem o querer, com as crianças eles se confundem, chegando a tirar-lhes a primazia, emergindo o lado mais imaturo e egoísta, sobretudo em situações de fragilidade. Boas intenções e conhecimento das necessidades da infância não faltam, mas parece haver outras razões, um tanto desconhecidas, que os fazem tropeçar no caminho do cuidado.
Em muito ampliamos nosso conhecimento das peculiaridades e vulnerabilidades da infância, da importância e do papel da família, e da sociedade, para uma saudável formação da personalidade e de responsáveis cidadãos. No entanto, em plena era da informação, em meio ao consumismo desenfreado, como que desinformados, e de modo inconsciente, deformamos a infância e a tornamos alvo do mercado de consumo. Quase que num retorno à desinformação medieval, e como nas pinturas de época, vemos crianças fantasiadas de pequenos adultos, adiantadas em seu desenvolvimento e superdotadas de uma sexualidade que em muito transcende aquela que lhes seria própria.
E, ainda, não podemos esquecer do nível de exigência de que são alvos as crianças, inclusive quanto a atender o grau de idealização e mesmo as desmedidas demandas emocionais dos adultos. Situação esta a que as crianças estão particularmente vulneráveis, sobretudo nas disputas judiciais.
No Direito de Família foram realizados sensíveis avanços quanto a enxergar as peculiaridades da infância e necessidade de proteção. Uma boa ênfase tem sido dada quanto ao direito ao cuidado e ao acesso emocional à mãe, ao pai e ao casal de parental, contemplando o valor do afeto e dos vínculos para a construção da personalidade. De grande importância as novas leis que tratam da guarda compartilhada e da alienação parental, e ainda há outras por vir relativas ao que tem sido denominado de abandono afetivo.  
Leis que traduzem na prática a aplicação do Princípio do Superior Interesse da Criança e da responsabilidade que cabe aos adultos; um avanço na compreensão e mudanças quanto ao tratamento que a infância recebe, ou deveria receber, nos processos de Direito de Família. Muito se fez, e se faz, em nome daquele princípio. Mas também devemos admitir que, muitas vezes, ele é invocado mais servindo de escudo ou álibi a outros propósitos, não tão evidentes e mesmo conscientes, e mais difíceis de compreender. Nessa situação, as demandas dos adultos se confundem com o alegado cuidado para com as crianças, e o uso dos processos judiciais, por vezes, encobre o que seriam interesses dos adultos, e que não necessariamente aos filhos beneficiam. Como num reflexo da sociedade de consumo, também no Direito de Família, por paradoxal que seja, mas bem real, assistimos, com grande frequência situações de alienação da infância.
Tomando a contribuição da Psicanálise, podemos esclarecer, ao menos um pouco, o uso ou mau uso do referido princípio e dos processos judiciais, levantando algumas das razões que poderiam estar por trás de, na prática, fazer-se justamente o oposto quanto ao cuidado com a infância. Porque em muitas disputas pelas formas de convivência é justamente o sujeito alvo de preocupações — a criança — que se transforma em objeto sacrificado?
Algo que se interpõe no caminho do cuidado põe em xeque a autonomia de nossa vontade em agir segundo nossas melhores intenções, saindo de cena o adulto que cuida. Forças da ordem do inconsciente certamente estão presentes nessa dinâmica que foge ao controle do que sabemos, conscientemente, ser o melhor.
Freud foi buscar na infância as origens de psicopatologias e os primórdios da construção da identidade e da sexualidade. Encontrou nos adultos, de forma consciente ou inconsciente, fantasias próprias àquelas da infância, chegando a causar confusões com os acontecimentos da realidade. Ou seja, as fantasias que alguns adultos expressavam, como se fossem fatos que tivessem efetivamente ocorrido, foram compreendidas em suas origens infantis que, por alguma razão, continuaram ativas naqueles adultos. Assim, Freud, com uma teoria evolutiva da mente, verificou a emergência de aspectos infantis no adulto, e que seriam, em certa medida, responsáveis pelos transtornos que estes apresentavam.
É a emergência desses aspectos mais infantis que também seriam, em parte, responsáveis pelas disfunções que observamos quanto ao exercício das funções nas famílias, sobretudo nos impasses levados ao Judiciário.
Próprias são à infância as fantasias que facilmente reconhecemos nos contos de fadas, como também aquelas proibidas, e que são reprimidas para o inconsciente: o desejo em ser adulto, como a mãe e como o pai, e em formar um par com um dos pais, além de tirar o outro de cena. Mas também de modo inverso, próprias ao adulto, mas devidamente reprimidas e inconscientes, as fantasias de, com seus próprios pais e, também, com os filhos, de formar um par. De modo simples, este é o mito de Édipo Rei, que foi utilizado pela Psicanálise para compreender a formação e o funcionamento inconsciente de nossa mente. Uma dinâmica, repito, inconsciente e reprimida, que toca fantasias dos filhos em relação aos pais e destes em relação àqueles.  
A partir desse ponto de vista, trazido pela Psicanálise, em situações de crise, como o são as rupturas conjugais, muitas vezes emergiriam, nos adultos, justamente os aspectos mais infantis e regredidos, ocorrendo confusões entre prioridades dos pais e as necessidades dos filhos. E, nesta situação, de modo inverso ao que se admite mais facilmente como fantasias e desejos dos filhos em relação aos pais, estes podem, por diversas carências e razões inconscientes, formar pares com seus filhos. Alerto que cuido aqui de vínculos da ordem da afetividade.
A época do desfazimento do casal conjugal é bastante delicada quanto ao rearranjo dos vínculos, das emoções e dos lugares que cada um ocupa na família. E, muitas vezes, pode ocorrer algum nível de confusão e mesmo de inversão, quando se dá uma tentativa de substituição afetiva da perda do par adulto, trazida pelo divórcio ou dissolução da união estável, pelo vínculo com os filhos. Não raro, estes passam a ganhar um lugar central, não tanto em função de seu superior interesse, como seria desejável, mas como se adultos fossem, e muito mais em função de aspectos inconscientes e para compensar para o adulto o par perdido, ocupando simbolicamente o lugar daquele que agora falta.
E mesmo os ressentimentos podem encontrar lugar, indevido é claro, no uso que é feito dos filhos, no seio dos processos judiciais. Clara, também nestas situações, a perda da dimensão do lugar e da fragilidade da infância.
Em suma, é como se nestas situações de crise e de relações disfuncionais, e sintomáticas, em alguns casos se reativassem aspectos infantis nos pais que, tal qual crianças, e como adultos alienados de seus lugares, passam a tratar os filhos quase como se seus pares adultos fossem. Há, nestas situações, um emergir de aspectos que estavam reprimidos no inconsciente, sendo que, não raro, observamos uma inversão de lugares e de responsabilidades. E, neste caso, por vezes os filhos passam a atender o desejo dos pais, como se deles fossem, deles cuidam como gostariam de ser cuidados — uma infância sem dúvida alienada e que cabe resgatar.
Giselle Câmara Groeninga é psicanalista, doutora em Direito Civil pela USP, diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM, vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família, professora da Escola Paulista de Direito.

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