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sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Por amor às crianças

Edição 46 - Janeiro/Fevereiro/Março de 2009
ENTREVISTA (SM pág. 3)

Acompanhe a trajetória profissional e pessoal da pediatra marroquina Najat M’jid nesta entrevista exclusiva

Najat M’jid
Por Concília Ortona*
Há tempos as trajetórias pessoal, profissional e, por que não dizer, emocional, da pediatra marroquina Najat M’jidvinculam-se à luta pela inclusão de crianças exploradas e em situação de rua: doze anos atrás ela fundou a Organização Não-Governamental (ONG) Bayti (algo como “Meu Lar” em árabe, idioma oficial do Marrocos), que atua junto aos pequenos vulneráveis e seus familiares. Tamanha dedicação a promoveu a referência sobre o assunto: em 2000, por exemplo, atuou como consultora do premiado filme As Ruas de Casablanca, em que os meninos Ali, Kwita, Omar e Boubker protagonizaram seus próprios papéis: os de vítimas do abandono, moradores de rua de uma grande cidade. Em junho de 2008, a médica – formada na França, e que jamais deixou de exercer sua profissão – precisou enfrentar outro desafio, ao ser nomeada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como Relatora Especial sobre a Venda de Crianças, Prostituição e Pornografia Infantis. Tal função trouxe recentemente a dra. M’jid ao Rio de Janeiro, onde participou de congresso mundial voltado a encontrar soluções contra o abuso de menores. Pouco depois, a pediatra concedeu esta entrevista exclusiva. 

Confira, a seguir. 

Ser Médico: Fale-nos um pouco a respeito de sua vida profissional e dedicação à filantropia. Por que escolheu a pediatria? De que forma a especialidade encaminhou-lhe ao campo do combate à violência contra crianças pobres, que vivem nas ruas?

Najat M’jid: Optei pela pediatria porque adoro crianças. Além disso, trata-se de uma especialidade que permite ao médico não apenas prestar cuidados de saúde aos pequenos, como também a aconselhar os pais, levando em conta o ambiente socioeconômico e o relacionamento entre os membros daquela família. Atuar como pediatra, me permite, ainda, acesso fácil às crianças em situação de rua: além de cuidar da saúde delas, consigo construir um relacionamento forte com meus atendidos. Eles confiam em mim. Sei que conciliar meu trabalho, militância e âmbito pessoal não é algo fácil, porque acabo não deixando tempo suficiente para mim mesma... Porém, escolhi esta vida e me sinto feliz com ela: encho-me de energia ao observar crianças exploradas e excluídas no passado, agora tendo chances de proteção e de integração.

Ser: Quais são os principais fatores que contribuem ao abuso e à exploração de crianças?

M’jid: Existem vários, entre eles: a privação do ambiente familiar ou a vivência de problemas familiares, como a morte dos pais, divórcio, o fato de serem filhos de mães solteiras, de pais presos e/ou viciados em drogas ou bebidas alcoólicas, de presenciar ou passar por violência doméstica; pobreza e falta de trabalho dos pais e/ou nenhum (ou dificuldade de) acesso à moradia, educação, saúde, justiça; e normas sociais específicas que levam à discriminação contra as mulheres, a casamentos precoces e a tabus relativos à sexualidade.

É curioso observar que o HIV/Aids aparece como causa e consequência da exploração sexual de crianças, pois existe o mito cultural perigoso de que o sexo com crianças pequenas previne a Aids (particularmente na África). A doença ainda é responsável pelo aumento marcante do número de órfãos e de crianças que chefiam suas casas, mais vulneráveis à exploração sexual. Contribuem ainda para os problemas de violência e exploração de crianças e adolescentes o trabalho infantil, falta (ou insuficiência) de serviços de proteção à criança, consumismo exacerbado, desenvolvimento da indústria do sexo, e até desastres naturais, guerras e destituição de poder de algumas populações; além da impunidade aos contraventores.
SER: Pode-se imaginar que o abuso de crianças ocorra tanto em países desenvolvidos quanto em nações em desenvolvimento? Existem variações entre explorações ocorridas nesses dois contextos? 

M’jid: É bastante difícil dar uma resposta, por causa da falta de informação relativa à magnitude e às formas de exploração sexual. Por exemplo, ainda não tenho uma avaliação clara sobre seu país, o Brasil, pois comecei como representante especial das Nações Unidas sobre venda, prostituição e pornografia envolvendo crianças e adolescentes em junho de 2008. Porém, fica claro que a exploração sexual de crianças e adolescentes ocorre em todos os países.

No entanto, menos em nações cuja legislação é harmonizada com os instrumentos internacionais de proteção a tal universo; quando as leis são bem conhecidas por todos; e nas quais a exploração sexual de crianças é criminalizada e onde os perpetradores são fortemente condenados. E, também, é menor naquelas que propiciam às crianças e adolescentes acesso fácil a serviços sociais de proteção e a mecanismos de denúncias que garantam sua confidencialidade e anonimato; ou em países que respeitem os direitos de todas as crianças, sem discriminação de qualquer ordem.
SER: A exploração sexual costuma ser mais frequente entre meninas do que entre meninos. Em que grau a base desta violência reflete a discriminação contra a mulher na sociedade, e em que grau reflete a pobreza das nações? É possível separar estes dois componentes, quer dizer, a discriminação contra a mulher da pobreza?

M’jid: Evidentemente, a exploração sexual afeta um número maior de meninas e mulheres, por conta da discriminação ao contingente feminino – basta observar a alta porcentagem de meninas/mulheres estupradas durante as guerras, a frequência do tráfico de garotas para prostituição etc. A pobreza sempre torna mulheres e crianças mais vulneráveis a todas as formas de abuso, exploração e violência, mas vale lembrar que os garotos também se tornam vítimas de turismo sexual e de prostituição... Em muitos países, tabus relativos à homossexualidade levam, como consequência, à redução da quantidade de informações vinculadas a tais assuntos.

SER: Qual é hoje o perfil dos exploradores/abusadores? Esses dois personagens, o abusador e os pais, são frequentemente a mesma pessoa? Como prevenir exploração e abuso no contexto familiar?

M’jid: Não existe um perfil típico: qualquer criança e/ou adolescente pouco informado, ou privado de proteção, pode ser abusado ou explorado. Num enfoque de incesto, infelizmente, os abusadores podem ser, sim, pais e parentes. No contexto familiar, a prevenção da exploração e do abuso baseia-se em mecanismos de detecção precoce acessíveis às crianças; em aconselhamento e programas de orientação para famílias com dificuldades econômicas e sociais ou marginalizadas; cuidados alternativos direcionados a crianças provenientes de lares complicados; e em campanhas de conscientização dos familiares, centralizadas em suas comunidades.

SER: No Brasil é considerado politicamente incorreto referir-se à “prostituição infantil”: as pessoas preferem dizer “exploração sexual infantil”. Para a senhora, essas duas classificações possuem o mesmo sentido? 

M’jid: A prostituição infantil é apenas uma forma  de exploração sexual de crianças. Refere-se ao uso do menor para atividades sexuais, visando remuneração e outros tipos de compensação. O problema é que o termo “prostituição” obscurece a natureza do comportamento sexual abusivo, apontando erroneamente ao conceito de consentimento. Isto, de algum modo, pode sugerir que as crianças e adolescentes concordam com o abuso, ao invés de colocá-las em seu lugar, que é o de vítima. 

SER: Para evitar que crianças e adolescentes sejam explorados e traficados, os esforços deveriam ser dirigidos aos seus pais e familiares, diretamente aos abusadores ou aos governos? Por quê?

M’jid: É preciso direcionar as medidas a todos, especialmente às crianças, buscando prevenção, proteção, recuperação e reintegração. Obviamente, parte do empenho deve voltar-se aos pais e familiares, com aconselhamento e empoderamento do núcleo familiar; aos próprios abusadores, em forma de tratamento e criminalização; e aos governos, com políticas públicas efetivas e estratégias de proteção à criança.
Tais políticas e estratégias funcionam, sim, contanto que ajudem a elevar a conscientização e a implementar efetivamente a legislação; aumentem o grau de informação e propiciem treinamento de pessoal; bem como, facilitem o acesso das crianças aos serviços sociais. É válido ainda incentivar mecanismos de denúncia e de extraterritorialidade, o fim da impunidade e o acesso controlado à Internet.
SER: Falando-se em Internet, qual é o papel que a rede mundial de computadores ocupa, em termos de riscos de violência contra as crianças? Tais riscos são factíveis ou a Internet serve apenas para evidenciar aqueles que já existem? 

M’jid: O fácil (e não controlado) acesso à Internet de crianças e jovens aumenta as chances de exploração sexual, por meio de conversas com pedófilos em chats. Facilita também o tráfico e o turismo sexual, bem como o desenvolvimento da pornografia infantil. Entre as ações necessárias para proteger os menores se incluem a conscientização da própria criança e de seus familiares quanto aos perigos inseridos na rede de computadores e o controle do acesso a determinados espaços virtuais, além do envolvimento das companhias de Internet e do treinamento de profissionais na batalha contra a criminalidade virtual.

SER: Em um artigo, o cineasta Nabil Ayouch, compatriota da senhora, elogiou seu apoio à produção do filme Streets of Casablanca (Ruas de Casablanca). De que maneira a divulgação desta triste realidade pode ajudar as crianças focalizadas e os grupos vulneráveis?

M’jid: Trata-se de um filme cujo diferencial é o fato de algumas crianças em situação de rua interpretarem seu próprio dia-a-dia. A Bayti, ONG à qual coordeno, foi parceira durante toda a realização da obra, que teve um impacto eficiente, mudando a opinião e aumentando o entendimento do público a respeito deste fenômeno, e mostrando como vivem e o que pensam as crianças em situação de rua. A experiência foi positiva também às crianças porque, de alguma forma, conseguiu apontar a elas metas para o futuro – coisas das quais estes pequenos sentem enorme falta.
SER: Para terminar: seria utopia imaginar um mundo sem exclusão social, num contexto de tanta iniquidade e crises como o nosso? Por onde poderíamos começar a trabalhar, no sentido de reduzirmos as enormes diferenças presentes entre crianças ricas e crianças pobres?

M’jid: Isso é um sonho e todos nós teríamos que mudar nossa mente, nosso comportamento e estarmos mais envolvidos na tarefa de mudar a sociedade.

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