25/11/2015
Imagno via Getty Images |
A história é feita de histórias que contamos. Ou que deixamos de contar.
Essa é a tragédia de Maria Anna Mozart, apelidada de “Nannerl”.
Quando era pequena, Nannerl tinha tanto talento musical quanto Wolfgang Amadeus.
Crianças, os dois percorreram a Europa em turnê, sendo aclamados igualmente. Nannerl chegou a ser descrita como superior a seu irmão como instrumentista.
Mas, quando se tornou mulher adulta, apresentar-se em público deixou de ser visto como socialmente aceitável.
Enquanto o pai deles, Leopold, fomentava o talento de Wolfgang e o acompanhava em turnês pela Europa, Nannerl era deixada em casa para costurar e procurar um marido.
Dois séculos após a morte de seu irmão, Nannerl não passa de uma nota de rodapé na história de Mozart.
Como fato biográfico presente na infância e adolescência dele, ela é facilmente esquecida, vista apenas como uma irmã que ele tinha.
O monólogo The Other Mozart, que hoje percorre os Estados Unidos, dá voz a essa frustração, reimaginando a narrativa de Nannerl, que é encarnada com cabeleira enorme e personalidade que lembra uma Helena Bonham Carter excepcionalmente animada.
Usando a correspondência da família Mozart, a diretora e atriz Sylvia Milo criou uma versão das experiências de Nannerl imbuída de enorme compaixão pela artista que ela poderia ter sido.
The Huffington Post conversou com Sylvia sobre como foi produzir, escrever e protagonizar a peça, a força que existe no ato de contar histórias de mulheres e sobre negar-se a esquecer.
O que levou você a querer escrever The Other Mozart?
Cresci fazendo música, como violinista e pianista, e percebi que geralmente não ouvimos as histórias das mulheres, especialmente na área da música clássica.
The Other Mozart nasceu especificamente quando eu fui a Viena para um festival que festejava o 250º aniversário do nascimento de Mozart.
Fui para a casa de Mozart e vi o retrato familiar encomendado por Leopold Mozart. Foi a primeira vez que tomei conhecimento da existência de Nannerl.
O que me chamou a atenção foi que havia uma mulher sentada ao lado de Mozart e que parecia estar no mesmo patamar que ele.
Quando pesquisei como era Nannerl como instrumentista, descobri que os dois percorreram a Europa em turnês e que o nome dela apareceu em primeiro lugar em muitos dos concertos. No entanto, as composições dela não sobreviveram.
Achei que era uma história que precisava ser contada. Já que ninguém mais ia fazê-lo, resolvi cuidar disso eu mesma.
Muito pouco é sabido sobre Nannerl. Como você pesquisou a vida dela?
Foi difícil. Não existem biografias de Nannerl traduzidas ao inglês. Há duas em alemão, mas não falo alemão, infelizmente.
Então comecei minha pesquisa usando os materiais originais, as cartas. Havia também um livro intitulado Mozart's Women, muito bom, e de modo geral as biografias de Wolfgang, mas não havia nada especificamente sobre ela.
Então me concentrei nas cartas enviadas pela família. A imagem dela que é vista na peça vem dessas cartas.
Temos apenas algumas poucas cartas de Nannerl e sua mãe, mas temos a correspondência completa trocada entre Wolfgang e Leopold, porque as mulheres guardaram as cartas, embora os homens não as guardassem tanto.
A partir das cartas pude ter uma visão da família inteira, seus relacionamentos, suas esperanças, seus sonhos e todo o trabalho incrível envolvido em querer mudar-se de Salzburgo e viver uma vida melhor.
Como instrumentista, parece que Nannerl era melhor que Mozart. É o que dizem as críticas.
Como você captou o talento de Nannerl por meio desse processo?
Foram publicadas algumas resenhas sobre ela como instrumentista.
Uma dizia: “Imagine uma menina de 11 anos tocando as sonatas e os concertos mais difíceis dos maiores compositores, ao cravo ou ao piano, com precisão, leveza incrível e bom gosto impecável. Foi motivo de assombro para muitos.” Essa foi uma crítica real escrita, a respeito de Nannerl, não de Wolfgang.
Há outras também, de amigos e jornais. Há tanta coisa escrita sobre as duas crianças. E nas cartas, Leopold relatava a seus amigos tudo o que tinha acontecido. Ele transmitia a reação das pessoas a seus filhos e seu próprio assombro também. Temos tudo isso nos materiais de fonte.
Quando Nannerl foi deixada em casa [enquanto Wolfgang e Leopold viajavam em turnê], ela escreveu uma composição e a mandou a eles na estrada. Não temos a música, mas temos a reação de Wolfgang a ela. Quando a toca, na peça, ele diz:
“Não acredito que você componha tão bem. É belíssimo.”
Você acha que ela compôs outras obras que se perderam?
É muito provável que sim. Sabemos que ela estudou composição –temos cópias dos exercícios de composição que ela fazia. Então sabemos que ou ela estudou por conta própria, ou Leopold lhe falou sobre isso.
Mas não é algo que fosse incentivado em uma menina, porque não existia a profissão de compositora para uma mulher.
Há muitos elementos desconhecidos na história de Nannerl. Sabemos que ela compunha, mas não sabemos quanto.
Wolfgang parece ter se surpreendido ao receber a composição dela, indicando que não sabia que ela compunha, e a incentivou a compor mais.
Mas também temos as cartas do pai naquela época, em que ele nem sequer menciona o fato. Por isso parece que isso não era incentivado (em mulheres). Talvez fosse até desencorajado.
Outra coisa interessante é que Nannerl anotou algumas composições de Wolfgang quando ele era pequeno demais para colocá-las no papel.
Assim, é possível que algumas das composições de Wolfgang sejam dela. Também sabemos que quando ele estava em Londres, trabalhando sobre sua primeira sinfonia, ela escreveu tudo e fez os arranjos orquestrais para ele.
Não está claro qual era o âmbito da colaboração deles, mas Nannerl era uma música de grande talento.
Podemos dizer que Nannerl era tão talentosa quanto Mozart? Parece ser essa a visão mostrada na peça.
Como instrumentista, parece que Nannerl era melhor que Mozart. É o que dizem as críticas. Ela era mais velha que ele.
Os dois começaram a tocar na mesma época, mas Nannerl era um pouco mais velha que Wolfgang, então talvez ele tenha tido que se esforçar para alcançá-la. Mas quando estavam em turnê, ela era tão boa quanto ele ou melhor.
Em termos de composição, não sabemos. Acho que é justo considerar que Wolfgang não era alguém que pudesse mentir em uma carta à sua irmã.
Portanto, se ele elogiou a composição, tenho certeza que foi um elogio sincero. Mas, infelizmente, nunca teremos plena certeza. Essa é a tragédia.
Quando estudamos a história do ponto de vista da mulher, fica muito claro que não temos uma visão completa.
O que você acha que a levou a ser obrigada a deixar de fazer música? Por que ela foi tão esquecida?
Enquanto eu escrevia a peça, fiquei tentando decifrar de quem foi a culpa e o que foi que aconteceu. Não foi possível identificar uma só explicação. Foi uma combinação de muitos fatores.
Nas biografias de Wolfgang, as pessoas às vezes mencionam Nannerl. Na maioria dos casos, criticam o pai por fazer pouco caso de um filho e concentrar sua atenção sobre o outro. E eu entendo a razão disso: Wolfgang era menino.
Ele poderia exercer um papel remunerado na corte e cuidar da família e da irmã. Na realidade, esperava-se dele que cuidasse de sua irmã na idade adulta, se ela não se casasse.
As dificuldades econômicas da família Mozart contribuíram em muito para impedir Nannerl de fazer música.
Temos uma ideia equivocada sobre Mozart devido às roupas de época em que ele é retratado. Mas a família dele não era nobre ou rica.
Era uma família de classe média. A família contraiu grandes empréstimos para poder fazer aquelas turnês. Arriscou tudo para promover Mozart, para que ele pudesse melhorar a condição dela (da família).
As decisões tomadas por Leopold foram absolutamente lógicas.
Faziam sentido para a sobrevivência da família. Não o critico nada por isso.
Mesmo assim, devido à sociedade da época, havia compositoras mulheres, sim, mas apenas as que fossem da nobreza poderiam mostrar seu trabalho. As mulheres tinham que tocar de graça. Se ganhassem dinheiro fazendo música, seriam vistas como prostitutas. E não foi essa a situação de Nannerl Mozart. Ela não teve a oportunidade.
Parecia que havia um receio cultural profundo em relação à ideia de mulheres criativas.
As mulheres ainda eram vistas como pessoas que valiam menos que os homens. Considerava-se que elas deviam ficar em seu lugar, no lar, cuidando da família.
Chegava a se discutir se era possível uma mulher criar. Um crítico que li em minhas pesquisas disse que uma mulher não poderia ter filhos se criasse arte, porque gastaria toda sua criatividade. Havia ideias muito estranhas na época sobre as mulheres e a criação. Argumentava-se até que não é a mulher quem gera o filho, que é o homem quem o gera o filho e a mulher apenas o carrega no ventre. É assombroso.
Tendo feita esta pesquisa e escrito esta peça, como você hoje encara as mulheres na história? Há muita coisa que nos passou despercebida?
Acho que ignoramos metade da história. As mulheres não se limitavam a ficar em casa.
Mesmo apenas com minhas pesquisas, que foram muito voltadas à situação de Nannerl, vi indícios de muitas artistas mulheres que deixaram de ser citadas.
Por exemplo, depois da Revolução Francesa houve um período de tempo durante o qual se permitiu que mulheres apresentassem óperas nos teatros de ópera.
Houve muitas óperas de mulheres, mas então a novidade foi sufocada e proibida, e os homens voltaram. É revoltante. Quando estudamos a história do ponto de vista da mulher, fica muito claro que não temos uma visão completa.
Esta entrevista foi editada e resumida.
Este artigo foi originalmente publicado pelo HuffPost US e traduzido do inglês.
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