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sábado, 9 de julho de 2016

Almodóvar volta às mulheres fortes, frágeis e mães acima de tudo

Em Julieta, um Almodóvar sóbrio volta ao território das mulheres resilientes e delicadas ao mesmo tempo, que vivem a maternidade como uma segunda pele

RUTH DE AQUINO
05/07/2016

Elas não são heroínas nem vilãs. “Ni putas ni santas”, como dizem as espanholas. São protagonistas de sua vida e, mesmo diante de um sofrimento profundo, um abandono, uma violência ou uma tragédia particular, recusam o papel de vítima e vivem a maternidade como se fosse uma segunda pele. São personagens-chave do espanhol Pedro Almodóvar, o diretor mais identificado com a alma feminina e materna no cinema contemporâneo, por filmes como Tudo sobre minha mãe, de 1999, e Volver, de 2006, entre outros.
Em Julieta, seu 20o longa-metragem, que estreia nesta semana nos cinemas brasileiros, Almodóvar volta a penetrar o território das mulheres fortes e frágeis ao mesmo tempo, donas de sua solidão.Baseia-se em três contos de A fugitiva, da escritora canadense Alice Munro, para fazer o filme mais sóbrio, menos exuberante, mais seco e menos excêntrico de sua carreira premiada. A Julieta de Almodóvar é interpretada por duas atrizes diferentes e desconhecidas. Adriana Ugarte é a Julieta de 25 a 40 anos – e Emma Suárez, depois dos 40 anos.
Emma Suárez como Julieta após os 40 anos (Foto: Collection Christophel)
“O escritor americano Philip Roth disse: ‘A velhice não é uma doença, mas um massacre’. É assim que sinto a passagem do tempo”, disse o cineasta em maio após a estreia mundial de Julieta no Festival de Cannes. “Nunca poderia ter feito este filme antes de agora, aos quase 67 anos.” À pergunta se Julieta seria seu primeiro alter ego feminino, o diretor admite que sim, num certo sentido. “A solidão de Julieta é provavelmente o reflexo de minha própria solidão. É uma mãe diferente de outras que criei. Mais passiva e mais séria. O que mostra também como eu mudei nesse tempo.” 
Em Julieta, estão várias assinaturas de Almodóvar, como o abuso do vermelho, do azul e do ocre, a trilha sonora de boleros, o melodrama rasgado, o rigor estético, a direção meticulosa, uma fotografia envolvente com closes, o mistério e uns toques surreais. Mas está ausente o humor. Os fetiches são só coadjuvantes. Os flashbacks são didáticos a ponto de decepcionar fãs do Almodóvar transgressor. Se compararmos com Fale com ela (2002) e A pele que habito (2011),Julieta surpreende bem menos por ser mais conectado à realidade, mas prende tanto quanto os outros dois, do início ao fim, pela carga emocional de um naufrágio particular. É um thriller sem ataques de nervos, sem sadismos e sem maus hábitos.
Julieta é uma professora de literatura clássica, de meia-idade, bonita, discreta e elegante. O filme conta seus encontros com amores e fatalidades entre 1985 e 2015. Jovem, ela aparece linda, esfuziante e exótica. Depois, mudam as roupas, o penteado. Fica a atitude corajosa.
Almodóvar “troca” as atrizes numa cena de pós-banho, quando a filha única  Antía enxuga os cabelos da mãe e ergue a toalha. “Não gosto dos efeitos de envelhecimento de atores. Desde o início eu sabia que usaria duas atrizes, porque a história se desenrola por 30 anos”, disse o diretor. “Precisava dar a impressão de que as duas se pareciam, embora não se pareçam em nada.”  Não há truque nem efeito especial.
Antía corta voluntariamente, aos 18 anos, todos os laços com a mãe ao sair em férias para um retiro espiritual e jamais voltar. O sumiço da filha desespera Julieta. Muito tempo depois, Julieta decide viver em outro país com o namorado Lorenzo, mas muda os planos ao encontrar nas ruas de Madri uma amiga da filha, que revela que Antía, desaparecida há 12 anos, está viva e tem três filhos.
Julieta torna a buscar Antía. Busca também os motivos de tudo que lhe aconteceu, desde que se apaixonou num trem por um jovem pescador e mergulhou fundo nessa paixão. O passado ressurge e, com ele, a dor que havia abafado. Precisa passar tudo por escrito. “Voy a contarte todo” (Vou te contar tudo), começa a escrever Julieta em um diário para a filha. Acompanhamos a história do luto de uma mãe que, como todas, sente culpa pelo que disse e não disse, pelo que fez e não fez.
Homossexual assumido, Almodóvar joga em sua obra muito da relação com a própria mãe. Para o jornal El País, em 1999, escreveu sobre o “primeiro dia com sol e sem minha mãe”. “Choro por trás dos óculos (...) Ainda que eu não seja esse tipo de filho, generoso em visitas e afagos, minha mãe é um personagem especial na minha vida.” Citou García Lorca:  “As pessoas pensam que os filhos são coisa de um dia. Mas demora muito.

Muito”. E completou: “As mães também não são coisa de um dia. E não precisam fazer nada especial para ser essenciais, importantes, inesquecíveis, didáticas. As mães sempre pisam em chão firme”.
A mãe de Almodóvar, para complementar o salário do pai, lia e escrevia cartas, como a protagonista de Central do Brasil, vivida por Fernanda Montenegro. Ela inventava e preenchia lacunas. “As vizinhas não sabiam, porque o inventado era sempre um prolongamento de suas vidas, e ficavam encantadas depois da leitura. (...) Essas improvisações eram para mim uma grande lição.”
Em Julieta, Almodóvar se conteve e fez seu primeiro filme noir feminino.  “A história dita minhas decisões. Queria abordar a dor da forma mais austera possível. Meu primeiro drama verdadeiro, severo e sem recorrer à comédia. Tive de me reprimir para não manifestar a parte barroca de minha personalidade.” Almodóvar pensara em ambientar Julieta no Canadá ou em Nova York e chamar Meryl Streep. Mas o frio e as dificuldades com idioma e cultura diferentes o levaram a adaptar o roteiro para a Espanha. Nunca o diretor havia filmado em vagões de trem. É uma sequência simbólica, erótica, colorida e sombria. Do lado de fora, neve. Julieta é filmado em várias regiões da Espanha, do litoral bravio aos Pireneus, passando pelas ruas e pelas varandas madrilenhas.
As mulheres gostam mais do novo filme de Almodóvar do que os homens, de maneira geral. Fácil entender. Há uma forte identificação com os desafios da maternidade na vida moderna e com aquele amor que vai além de tudo, do dia, da noite, das conquistas e perdas, dos sonhos e pesadelos. Sofremos junto comJulieta, torcemos por ela, assim como torcemos e sofremos por nós mesmas, mães, tão extremadas, dramáticas e práticas.
Julieta faz parte de uma linhagem de personagens que encarnam a mãe no cinema atual fora do circuito hollywoodiano. Filmes imperdíveis, com mulheres de verdade num mundo real. Entre elas, Paulina (do filme com o mesmo nome), Julia (de Leonera) e Joy (de O quarto de Jack). Mães abandonadas, presas ou estupradas, mas que não abaixam a cabeça. Elas reescrevem seu destino e derrubam o mito do “sexo frágil”.

Três mães fortes de um cinema-verdade (Foto: Época)
Época

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