Triste é o papel daqueles que, tendo se proposto a mudar o mundo, tornam-se incapazes de buscar alternativas e se limitam a imitar, com sinal trocado, a atitude do opressor
Por Camila Spósito
A imagem acima faz soar o alerta máximo: é urgente falarmos de valores na era da pós-modernidade e seus impactos na atuação política. Também é urgente avaliarmos se temos tanta certeza assim sobre quem realmente nos representa politicamente, pois parece que parte relevante da esquerda embarcou de vez na sociedade do espetáculo e se tornou reativa ao discurso fascista da direita, deixando de ser a voz emancipatória que poderia nos guiar para uma alternativa progressista em relação à já moribunda democracia burguesa.
O que ocorre é: ao sermos reativos, espelhamos exatamente aquilo que combatemos. Em vez de superar a lógica do que queremos extinguir, perpetuamos, com sinais trocados. A intenção pode ser outra, mas o impacto social bruto é de aumentar um ambiente inóspito aos anseios de liberdade, seja ela civil, política, econômica, religiosa, etc.
Na foto vemos Kathy Griffin, uma atriz e ativista americana apoiadora do partido democrata, derrotado por Trump nas urnas, segurando o que seria a cabeça do atual presidente dos EUA, decapitada e ensanguentada. Observe por um minuto o que essa imagem lhe evoca antes de refletir racionalmente e montar seu argumento, por favor.
Por mais absurdas que sejam as declarações classistas, misóginas, homofóbicas e racistas de Trump, representantes do que seria a ala progressista oposta a esse retrocesso têm o dever de oferecer em cada ato político, no conteúdo e na forma, uma alternativa melhor do que a barbárie para a solução de conflitos, ainda que simbolicamente. Afinal, esta é a sua razão de ser.
É por isso que, em certo sentido, o ato de Kathy assume uma gravidade que não existe em nenhuma das declarações abomináveis de Trump: se estas são muito piores em seus efeitos imediatos, pois machismo e homofobia matam todos os dias, aquelas sinalizam a morte de qualquer possibilidade de superação, pois demonstram a renúncia dessa via emancipatória pelos únicos que ainda a defendiam.
Fato a ser notado é que o ato seja protagonizado por uma mulher. No auge da primavera feminista, em que nossos anseios estão sendo incorporados pelo sistema em vários níveis culturais, é possível acreditar que o futuro seja mesmo feminino. A ação de Kathy me faz questionar, contudo, que futuro será esse?
Não basta que tenhamos mulheres aparecendo e ocupando cargos. A ação das mulheres na esfera pública deve ser perfeitamente consciente da sua responsabilidade ímpar porque não se trata de uma divisão do poder que já existe apenas, mas sim da construção de uma nova forma de exercer o poder. Nós somos o futuro não só porque somos maioria populacional e sim porque podemos fazer melhor que eles. O feminismo ao qual me filio quer não só a distribuição igualitária de poder entre os gêneros, mas também a superação dessas formas violentas de resolução de conflitos, tão própria do patriarcado.
É claro que não podemos confundir jamais a violência do opressor com a reação de defesa do oprimido. Não é a função deste texto endossar falsas simetrias do tipo “racismo reverso” ou igualar a cusparada de Jean Willys com as diárias agressões de Bolsonaro. O que se pretende questionar é: a reação que estamos tendo, por mais legítimas que sejam, nos colocam no sentido da emancipação que buscamos, ou nos fazem uma peça de um jogo que não queremos mais jogar?
A barbárie que se desenha à nossa frente, com a impossibilidade de construção de diálogo mínimo e o uso crescente de discursos de ódio de todas as fontes e interesses, é um caminho potencial que estamos trilhando juntos, opressores e oprimidos. Defender a reação como fundamento da atuação política é tão infantil quanto dizer que a crise política “Não é minha culpa, pois não votei na Dilma”. A esquerda tem que deixar de ser reativa e abandonar padrões mentais que empacam a análise política na identificação da “culpa” do opressor, ou vai perder mais uma vez a chance de ser a voz porta-voz da nova sociedade que se anuncia, confirmando, por ação ou omissão, a tendência sombria de ser a vítima histórica.
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