Ruth Handler tinha razões bastante práticas para prestar atenção nas brincadeiras de Bárbara e Kenneth. Além de mãe, era uma importante executiva da Mattel, fabricante de brinquedos que criara ao lado do marido e que começava a se destacar no mercado. Enquanto os brinquedos do menino diziam subliminarmente que ele poderia ser o que quisesse — caubói, bombeiro, médico e astronauta —, os da menina eram limitados a um único e repetitivo papel social: dona de casa! Ao observar a filha vestindo figuras femininas com roupinhas de papel, Ruth começou a se questionar sobre o porquê dessa obsessão por bonecas em forma de bebê.
— Por que não temos um único protótipo que possa representar a vida de uma mulher adulta?
Numa viagem de férias à Suíça, Ruth se deparou com uma boneca curvilínea de 30cm de altura que correspondia às suas expectativas criativas. É provável que não soubesse naquele primeiro momento que estava diante de um brinquedo, digamos, hardcore. A boneca de chamava Bild Lilli e era baseada numa personagem dos quadrinhos, uma garota muito descolada para os anos 1950 que corria atrás de homens bem-sucedidos e fazia sexo por dinheiro. Era costume pendurar a boneca com as pernas abertas nos postos de gasolina e nos salões de barbeiro. Quando um homem dava uma Lilli de presente a uma mulher, estava dizendo nas entrelinhas que, em vez de um relacionamento sério, estava à procura de sexo e nada mais.
Ruth revirou os olhos e levou várias dessas bonecas para os designers da Mattel. O principal deles, Jack Ryan, ex-projetista de metralhadoras e mísseis teleguiados (?!), remodelou o corpo de Lilli e trabalhou no desenvolvimento de um plástico que pudesse baratear o produto. Ninguém sabia na época, mas logo viria à tona que Jack era um doido viciado em sexo que construiu uma masmorra erótica no porão da própria casa. Como diz M. F. Lord, autora de Forever Barbie: the unauthorized biography of a real doll (Para sempre Barbie: a biografia não-autorizada de uma boneca de verdade, inédito no Brasil), Jack Ryan tinha razões muito particulares para fazer com que Barbie se parecesse com um dos seus utensílios sexuais.
Ruth batizou a boneca em homenagem à filha e apresentou os protótipos na Toy Fair, em Nova York, a maior feira da indústria americana de brinquedos. Sucesso instantâneo? Muito pelo contrário. Ali estava uma mulher tentando vender uma ideia de mulher num mercado dominado por homens que só conseguiam ver os seios pontudos da boneca. A opinião geral era que não pegaria bem uma coisa dessas nas mãos de uma criança. Ruth resolveu dar uma última cartada. Contratou os serviços do Dr. Ernest Dichter, psicólogo especializado em padrões de consumo e pesquisas de mercado, uma moda que o capitalismo americano importou diretamente de Viena e dos ensinamentos do Dr. Freud.
Quando o especialista chamou várias duplas de mães e filhas para manipular a nova boneca, Ruth descobriu escandalizada que as mulheres adultas também desconfiavam daquele maldito par de seios. Sentiam-se rivalizadas pelo objeto (sexual?), mas deixaram escapar uma série de atos falhos que não passou despercebida pelo Dr. Dichter. O pior pesadelo para uma mãe americana não era a vindoura revolução sexual, mas sim ter uma filha incapaz de arranjar um marido, já que maridos, naquela época, eram itens indispensáveis de sobrevivência. Assim, a única vantagem que viam na boneca era sua elegância, algo que poderia inspirar muitas meninas desajeitadas a entrarem na corrida do casamento, uma corrida que começaria em breve e que não premiava as segundas colocadas.
Com o parecer do Dr. Dichter e o protótipo melhorado de Jack Ryan, Ruth Handler finalmente convenceu o marido e os colegas a embarcarem no projeto. Até os homens foram capazes de entender que a coisa renderia se fosse para prosseguir na doutrina do casamento. Não é por acaso que o clímax do primeiro comercial de TV mostra a Barbie vestida de noiva. E com o cabelo repentinamente pintado de preto! O que será que o Dr. Dichter quis sugerir com isso?
Boa parte das informações acima estão em Brinquedos que marcam época, série documental que recentemente estreou na Netflix. Nos quatro episódios disponíveis, é possível ver como a indústria dos brinquedos reflete a ideologia de cada época, servindo como um instrumento pedagógico muitíssimo mais poderoso que o sermão do padre ou o ensinamento direto dos pais. Dos G.I. Joe que ressuscitaram na Era Reagan aos Mestres do Universo que reacenderam a imaginação dos meninos, das action figures de Star Wars às bonecas que remodelaram o imaginário das meninas da classe média norte-americana, os brinquedos são capazes de fundamentar preconceitos ou promover pequenas revoluções culturais. Tudo porque um brinquedo não é apenas um pedaço de plástico com rodinhas ou articulações, mas uma ferramenta que materializa o MITO em idades de grande absorção intelectual. Boba Fett, He-man, o Comandante Cobra e a Barbie merecem atenção. Por incrível que pareça, revelam muito do que somos individualmente e do que queremos da vida em sociedade.
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