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sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

"Em certo sentido, não se permite que as mulheres sejam si mesmas por inteiro"

Entrevista concedida pela escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie ao jornalista Jorge Pontual para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinaturaGloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (17h30), quartas (15h30), quintas (6h30) e domingos (14h05).

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Nova York está passando por uma experiência única. A cidade escolheu em votação popular um livro para ler. Todas as escolas, bibliotecas, livrarias e centros culturais estão participando e incentivando as pessoas a lerem. Nos metrôs, há anúncios como “leiam esse livro”, e o livro escolhido foi este aqui: Americanah, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, que é a convidada do Milênio.

No sucesso Flawless, Beyoncé se assumiu como feminista, usando trechos de uma palestra de Chimamanda que viralizou. O título era: “Todos nós deveríamos ser feministas”. Pode parecer que a romancista pegou uma carona na fama de Beyoncé, mas é o oposto. Foi a cantora quem tirou casquinha do sucesso de Chimamanda. Além de ser a nova cara do feminismo, ela é campeã de vendas com o romance que conta a história de uma imigrante africana que vem para a América na era Obama. Fã do ex-presidente, Chimamanda se tornou uma das vozes mais fortes na resistência a Donald Trump.
"Nós ensinamos as garotas a se encolherem. A se fazerem menores. Nós dizemos a elas: 'Você pode ter ambição. Mas não muita. Você deve querer ser bem-sucedida. Mas não muito. Do contrário, você ameaçará os homens'."
Jorge Pontual — O título Americanah é como os nigerianos chamam as pessoas nigerianas que vieram aqui para os Estados Unidos e voltaram americanizadas. Me lembrei da Carmen Miranda, “disseram que voltei americanizada”. Você veio para os EUA bem mais jovem, fez carreira aqui e depois voltou para a Nigéria, e a chamaram de “americanah”, como a personagem do livro.
Chimamanda Ngozi Adichie — Sim e não. Eu não me considero “americanah”, porque não passei tanto tempo longe de casa. E a personagem passou muito tempo longe de casa. Eu voltei para a Nigéria depois de quatro anos, o que é bastante tempo, mas não tanto assim. Então eu sentia que a Nigéria tinha me deixado para trás, mas ainda achava que recuperaria o tempo perdido. Eu me lembro de quando voltei para casa após quatro anos. Eu saía para comer com amigos em Lagos, e eles diziam: 'Pare de pedir legumes grelhados. Ninguém grelha legumes neste país. Aqui a gente usa óleo'. Porque eu tinha desenvolvido o ridículo hábito americano de querer legumes grelhados.

Jorge Pontual — E, como a personagem, os EUA fizeram você ter consciência de raça, coisa que não tinha antes.
Chimamanda Ngozi Adichie — Sim. Na Nigéria eu não me identificava como negra, porque não precisava. O país é majoritariamente negro. Temos etnias, religiões e classes como aspectos que identificam e dividem, mas não raça. Então, quando vim para os EUA, percebi que, para muita gente, eu era negra. Mas esse não era o problema. O problema foi perceber que ser negra significava algo negativo. Percebi isso quando estava na sala de aula no início da faculdade e o professor chegou com trabalhos que tinha avaliado e disse: 'Este é o melhor trabalho. Quem o escreveu?'. Quando levantei a mão, ele pareceu muito surpreso. Foi apenas um momento, mas percebi que a surpresa era porque ele não esperava que a melhor redação fosse de uma negra. E, sendo nigeriana, pensei: 'Será que ele não sabe que todos os nigerianos são brilhantes?'. Foi naquele momento que descobri o que ser negro significa aqui. E me vi resistindo a isso, não querendo ser identificada como negra, porque percebi que havia muitos estereótipos negativos ligados à raça. Até que comecei a ler, a aprender e a ouvir e entendi que a negritude é uma identidade que você pode definir. Hoje eu me identifico como negra com orgulho, mas também é muito importante para mim resistir ao que acho que são estereótipos negativos e também perigosos.

Jorge Pontual — E você viu os EUA com... É interessante, como uma antropóloga que chega de outro planeta. E descobriu os tribalismos. Muita gente fala da África e diz: 'Ah, é tribalismo, é tribal'. E você viu os tribalismos dos Estados Unidos, o que é muito interessante.
Chimamanda Ngozi Adichie — É um país extremamente tribal, mas não acha que seja. Isso é incrível neste país. A história que os americanos contam sobre os EUA eu acho interessante. Às vezes, eles dizem: 'Não temos classes. Todos são classe média'. Mas não é verdade. Há divisões imensas de classe. E há a religião. Há as pessoas que têm religião e as que não tem. É um fenômeno muito tribal. E obviamente a raça, que é muito tribal. E o mais tribal agora no país é a política, na esquerda e na direita. É incrível. Não há razão nem racionalidade, mas uma forma impulsiva de lidar com a pessoa do outro lado. Ou você é de uma tribo ou é de outra. Acho o nível de tribalismo na política americana hoje muito interessante.

Jorge Pontual — Um dos temas principais da segunda parte do livro é a primeira eleição de Barack Obama, que mobiliza os personagens. É um olhar muito interessante sobre o que aconteceu. Para você, principalmente, foi um divisor de águas, certo?
Chimamanda Ngozi Adichie — Foi uma coisa maravilhosa para mim. Eu não estava nos EUA, mas assisti e chorei. Mais tarde, comecei a refletir: 'Que bom que choramos, mas por que choramos?'. E acho uma pergunta importante, porque isso diz algo sobre o legado contínuo de racismo nos EUA. O fato de termos ficado emocionados e até chocados com a eleição de um negro. Não deveríamos ter ficado, porque ele é um homem incrivelmente inteligente e inspirador, só que é negro, então o significado muda. Mas eu me lembro de assistir e ficar feliz. E também de achar Michelle Obama a mulher mais legal do mundo.

Jorge Pontual — Você escreveu um artigo longo sobre ela.
Chimamanda Ngozi Adichie — Escrevi. Eu sempre a admirei.

Jorge Pontual — O que ela representa para você?
Chimamanda Ngozi Adichie — Uma espécie de confiança e de força, uma espécie de conforto na própria pele que percebo que não é permitido a muitas mulheres. Em certo sentido, não se permite que as mulheres sejam si mesmas por inteiro. Michelle Obama insistiu em ser inteira, e interpretei isso como um ato de coragem, o que sempre admirei.

Jorge Pontual — Se há algo de positivo na eleição do sucessor de Obama, é que ela deixou muito claro que esta é uma sociedade racista, que as estruturas de opressão ainda existem.
Chimamanda Ngozi Adichie — Com certeza.

Jorge Pontual — A eleição de Obama não mudou isso.
Chimamanda Ngozi Adichie — Não. Mas acho que muitos de nós já sabíamos disso. Não precisávamos da eleição para saber disso, mas...

Jorge Pontual — Agora está muito claro. Você escreveu em dezembro uma espécie de manifesto para a New Yorker. O que você pretendia com aquele manifesto?
Chimamanda Ngozi Adichie — Não sei. Eu estava enfurecida e triste. Eu sentia várias emoções e precisava escrever alguma coisa. O texto veio de um lugar que nem sei descrever. Eu queria dizer alguma coisa e esperava me conectar às pessoas, porque foi alguns dias depois de a pessoa que é presidente dos EUA se tornar presidente, e me parecia que as pessoas estavam tentando dar desculpas e suavizar o que para mim era uma catástrofe absoluta. E eu achava que a oposição precisava ter a coragem da convicção dela, precisava não tentar apaziguar. O fato de um lado ter vencido não significa que ele esteja certo.

The New Yorker: “Agora é a hora de elevar a arte do questionamento. O único ressentimento válido na América é o dos homens brancos? Se quisermos simpatizar com a ideia de que as ansiedades econômicas levam a decisões questionáveis, isso se aplica a todos os grupos? Quem é exatamente a elite?”.
Jorge Pontual — Agora eu vou falar desse livro aqui, que, assim como Americanah, também está publicado no Brasil. Dear Ijeawele – um manifesto feminista em quinze sugestões, o título brasileiro. Você publicou este manifesto e se tornou o novo rosto do feminismo. É o novo rosto glamouroso do feminismo! Mas Chimamanda se tornou uma líder feminista há cinco anos, quando ela fez uma palestra no TED Talks, aquela séria, era uma palestra sobre a África na qual... E era uma palestra longa, ela apresentou uma versão dela do feminismo que é muito interessante porque ela faz questão de dizer que o homem não é um inimigo.
Chimamanda Ngozi Adichie, no TED Talks: “Nós ensinamos as garotas a se encolherem. A se fazerem menores. Nós dizemos a elas: 'Você pode ter ambição. Mas não muita. Você deve querer ser bem-sucedida. Mas não muito. Do contrário, você ameaçará os homens'. Por ser mulher, devo querer me casar. Devo querer fazer minhas escolhas de vida sempre tendo em mente que o casamento é a mais importante. Casamento pode ser uma coisa boa. Uma fonte de prazer, amor e apoio mútuo. Mas por que ensinamos elas a quererem isso e não fazemos o mesmo com os garotos?
Chimamanda Ngozi Adichie — A questão não é demonizar os homens, o problema é uma estrutura cultural, religiosa... Precisamos tratar da raiz dessas coisas. Muitas dessas ideias são religiosas, muitas são culturais e muitas delas se tornaram, de certa forma, codificadas pela lei. Se um país tem leis... Por exemplo, quando um casal declara o Imposto de Renda, o nome e o documento do homem são usados automaticamente. A mulher é apenas a “esposa”. Precisamos questionar isso. Por que é assim?
Jorge Pontual — Um dos personagens de Americanah diz: 'Eu achava que o Brasil era a meca da raça', mas não é verdade. O que você viu no Brasil?
Chimamanda Ngozi Adichie — Em relação às histórias que os países contam sobre si, quando eu conversava com brasileiros nos EUA, eles gostavam de dizer: 'Nós não somos racistas. Todo mundo é igual'. E a primeira coisa que percebi e que me surpreendeu no Brasil foi que, quando me levavam a um restaurante sofisticado, todo mundo era branco.

Jorge Pontual — Até os garçons.
Chimamanda Ngozi Adichie — Até os garçons. Isso me surpreendeu, porque achei que, numa escala de desigualdade econômica, você espera que pelo menos os garçons sejam negros, mas nem os garçons podem ser negros no Brasil. Fiquei impressionada, e eu fazia perguntas... A outra coisa que aconteceu foi que, no aeroporto — eu usei uma versão disso no romance Americanah —, na hora do check-in, eu fui para a fila da classe executiva, e me disseram: 'Não!'. Acharam que, pela minha aparência, eu não podia estar na fila da classe executiva. Esse momento foi muito revelador, porque percebi que o funcionário não estava acostumado a ver pessoas parecidas comigo naquela fila. Isso revelou algo sobre o Brasil, mas também percebi que as pessoas não gostavam de falar sobre isso. Elas diziam: 'Não diga que somos assim, porque não somos'. Mas as evidências são óbvias. O Brasil claramente tem um problema de racismo.

Jorge Pontual — A capa deste livro diz que você é filha de Chinua Achebe. No sentido literário, certo? É a nova estrela da literatura nigeriana. Para quem não sabe, Chinua Achebe é um grande escritor da Nigéria, esse é um livro que reúne os três romances dele mais conhecidos, Things Fall Apart, que é um clássico da literatura africana. Seu preferido é A Flecha de Deus. Por quê?
Chimamanda Ngozi Adichie — Acho muito bonito. O Mundo se Despedaça é um ótimo romance, mas eu o acho mais acessível e simples. A Flecha de Deus é muito denso e muito verdadeiro na forma como conta a nossa história. Ele tem todo tipo de... Não é todo organizado, não é um pacotinho fácil de digerir. Você o lê e relê e aprende coisas novas. É um de meus romances preferidos. Eu realmente o acho sublime.

Jorge Pontual — E ele escreveu uma sinopse maravilhosa para você. O que disse?
Chimamanda Ngozi Adichie — Eu decorei. Mas vou fingir que não me lembro. Mas foi muito bonito e significou muito para mim, porque Chinua Achebe, que Deus o tenha, foi muito importante para a minha formação. Lê-lo me deu confiança para contar minha própria história, e esse é um dos melhores presentes que um jovem escritor pode receber.

Jorge Pontual — Eu não trouxe o livro que eu mais gostei, o romance da Chimamanda, porque eu li na versão eletrônica. O seu romance de que mais gostei foi Meio Sol Amarelo. Um livro que virou filme, inclusive. É uma história que se passa, uma história de família, que se passa durante a guerra civil da Nigéria. De 1967 a 1970, o sul da Nigéria se tornou independente, com República do Biafra, para quem é da minha idade, foi a primeira vez que a gente viu as pessoas morrendo de fome na África. Eu tinha 20 anos e me lembro bem do que aconteceu. Fiquei muito impressionado. Conte como você conseguiu criar um elenco imenso de personagens. Seu estilo foi comparado ao de Tolstói, porque traça um cenário amplo de todo o país. Fale sobre esse livro.
Chimamanda Ngozi Adichie — Vou falar sobre Guerra e Paz, porque fui eu que dei a ideia do livro a Tolstói. Meus pais eram vivos na época de Biafra...

Jorge Pontual — Você perdeu seus dois avós.
Chimamanda Ngozi Adichie — Sim.

Jorge Pontual — Não chegou a conhecê-los, porque nasceu sete anos depois.
Chimamanda Ngozi Adichie — Sim. Adoro ver como você se preparou tão bem. Obrigada. Mas, sim. Por causa disso, Biafra sempre foi algo pessoal para mim. Começou como interesse pessoal e depois virou político. Eu queria entender a história da minha família, queria entender por que aqueles homens, principalmente meu avô paterno, de quem ouvi falar tanto e que era um homem digno e maravilhoso, tinham morrido num campo de refugiados. Então eu li tudo que consegui achar. Mas meus pais não falavam muito da guerra. Acho que isso acontece quando há um grande trauma. As pessoas mencionam de passagem, mas ninguém diz o que aconteceu. Então comecei a fazer perguntas. Eu lia livros e depois fazia perguntas, e meu pai particularmente foi muito franco, porque se dispôs a falar de coisas muito dolorosas para ele. Eu tomava notas e depois fiz muitas pesquisas nos arquivos, analisei fontes primárias, realmente mergulhei naquele período. E eu queria entender as formas como as pessoas vivenciaram a guerra, porque a imagem de Biafra que ficou gravada na mente de muita gente foi a da criança faminta, que obviamente é muito difícil. Eu tive dificuldade de olhar aquelas fotos, que para mim eram muito pessoais. Eu olhava e pensava: 'Podia ser minha prima'. Mas eu também queria mostrar que houve pessoas que morreram de fome, mas havia pessoas que ainda tinham o que comer e havia estrangeiros que iam para Biafra e faziam carreira tirando fotos das crianças e ganhando prêmios em seus países. Acho que isso também faz parte da história. Eu quis mostrar esse cenário amplo. E deu muito trabalho. Passei muito tempo escrevendo esse livro, talvez seis anos. Quando escrevi a última palavra, eu não queria largar e entrei num estado depressivo estranho. Eu não sabia mais o que fazer da vida porque aquilo havia me consumido durante tanto tempo. E ainda é meu romance mais pessoal, ainda é o livro que me emociona quando leio trechos.

Jorge Pontual — Eu me emocionei. É uma obra-prima.
Chimamanda Ngozi Adichie — Obrigada.

Jorge Pontual — Como a fama mudou a sua vida ou a sua escrita?
Chimamanda Ngozi Adichie — Agora eu posso comprar mais sapatos.

Jorge Pontual — Como se tornou um ícone da moda? Sempre foi assim?
Chimamanda Ngozi Adichie — Não. Acho interessante o fato de vivermos num mundo que não espera que mulheres 'intelectuais' se importem com a aparência. Ser intelectual e vaidosa é tão estranho que começam a te chamar de ícone. Eu simplesmente fui criada por uma mulher... Aliás, isto é muito comum na Nigéria: você deve cuidar da aparência. E cuidar da aparência é um sinal de respeito aos outros. A minha mãe deixava muito claro para nós: 'Se forem sair de casa, devem estar apresentáveis'. Ela dizia em igbo... Ou seja: 'Deve parecer uma pessoa'. Eu cresci sabendo que devia cuidar da aparência, e isso é muito comum na Nigéria. Quando vim para os EUA, percebi que, se quer ser levada a sério, se é intelectual e principalmente se é mulher, não pode usar maquiagem, porque será chamada de fútil. Suas roupas devem parecer ligeiramente desleixadas, porque poderá dizer que está tão ocupada lendo que não teve tempo de passá-las. Eu cresci lendo livros e passando meus vestidos. Acho que há espaço para ambos. É só isso. O que quero dizer é que não encaro isso como algo incomum ou mesmo extraordinário. E muitas mulheres no mundo são assim. Muitas mesmo.

Jorge Pontual — Você usa muitas palavras em igbo. Como se pronuncia? “Kedu” significa “como vai”?
Chimamanda Ngozi Adichie — Muito bem! Minha missão é fazer com que o mundo todo fale igbo.

Jorge Pontual — Como se diz “obrigado”?
Chimamanda Ngozi Adichie — “Daalu”.

Jorge Pontual — “Daalu”.
Chimamanda Ngozi Adichie — Eu que agradeço.

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