Ana Carolina Bartolamei Ramos
Quarta-feira, 20 de junho de 2018
“Muito mais do que a sagração do feminino, a experiência da maternidade é o sepultamento da mulher que existia antes. Haverá outra, que ainda precisará saber quem é, mas não aquela. Todo nascimento de um filho é também o nascimento de uma mãe – e a morte de uma das tantas mulheres que somos ao longo de uma vida”.[1]
Existe um mito que se chama maternidade e ele é construído em você, mulher, desde que você é introduzida na linguagem, como parte integrante e imprescindível do seu feminino.
De todos os mitos em torno do feminino, o da maternidade talvez seja o que faz mais estragos. Porque está aí algo que ultrapassa a capacidade (ou não) de um corpo gerar. O engodo está posto, desde sempre: ser mulher e ser mãe são inseparáveis, dizem, o problema é que na afirmação do inseparável é o buraco que fica evidente.
Falo do buraco porque é de vazio mesmo que se trata isso que a sociedade patriarcal diz ser parte que integra. Se tem uma coisa que eu aprendi nesses meus poucos e intensos meses de maternidade é que apenas para sustentar a opressão do corpo feminino que se repete insistentemente, como se verdade fosse, a integração do corpo feminino pelo tornar-se mãe.
Não me entendam mal, gerar a vida é certamente uma das coisas mais belas que existem e, sim, somente um sujeito constituído biologicamente desde o nascimento com um útero é capaz disso, mas ser mulher não se limita a uma capacidade biológica.
Por isso é importante que se diga, e eu falo da minha própria queda de ideal, se continuarmos insistindo em impor às mulheres, ou aceitar que o discurso misógino o faça, a maternidade como finalidade de um corpo feminino, nem todos os livros, textos e grupos do mundo serão capazes de dar sentido à ruptura desse desencontro.
Deixar de lado as verdades absolutas pode parecer assustador, mas mais assustador que isso é continuar insistindo em negar que o rasgo que a maternidade produz numa mulher não é só físico.
A maternidade dilacera.
Não existe vida após a maternidade, dizem as desavisadas, eu digo há vida demais, por isso estraçalha tanto.
Você acorda daquele estado de transe que é o parto e não é mais você. Tem algo ali que se desfez e nasce uma mãe, essa desconhecida, enterrada lá no fundo do armário, que você resolveu libertar.
Liberta essa mãe, ela precisa se tornar sem tempo para processar, os recém-nascidos ali são dois, mas todo mundo espera que um deles já esteja pronto desde sempre.
Ora, o que seria uma mulher sem a maternidade, perguntam. Eu respondo: uma mulher! Ser mãe é de uma outra ordem, ainda que pela natureza dependa do ser mulher. São escolhas que um corpo feminino faz na vida, são apenas escolhas.
Por mais que o feminino se constitua também pela possibilidade de gerar, a possibilidade basta. O tornar-se mulher e o tornar-se mãe podem ou não coexistirem, mas acreditem, não é imprescindível. E mais, sem o cuidado necessário no percurso de ser mãe, percebo que talvez a mulher não sobreviva.
Tempo e espaço se misturam com o tempo e espaço deste outro, sem que haja tempo e espaço para você cicatrizar do luto daquela mulher que se foi. No teu corpo fica a lembrança, no teu filho o reflexo.
Fui eu que fiz a vida – ela pensa, enquanto assiste imóvel o filho dormir.
Ana Carolina Bartolamei Ramos é Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná e Membra da Associação Juízes para a Democracia. Escreve na coluna Sororidade em Pauta.
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