04/06/2018 por Luciene Félix
“Não se trata somente de união sexual, mas de ‘uma coisa’ que a alma de um quer da alma do outro”. Platão
Indômita potência, inspirador de virtudes, a divindade mais antiga, eterno, universal, pois presente em todo cosmos, belo e jovem, o amor é a busca pela unidade e também um tipo de delírio.
Especialmente neste mês dos namorados, insisto no poder que o amor possui. Segundo Platão, o amor é fruto de Póros e Penia (abundância e falta). Tendo isso em mente é compreensível o afã de encontrar uma alma que nos complete.
Eis o sonho de todos aqueles nos quais um coração pulsa, bombeando sangue até o último suspiro. De onde vem essa ideia (ou sensação, se preferir) de incompletude? Como a mitologia grega explica a existência de almas gêmeas? É algo somente casais heterossexuais?
Um dos mitos gregos que ilustra bem a condição da busca pela alma gêmea é o proferido pelo comediógrafo Aristófanes, no início da obra “O Banquete” (sobre o Amor), de Platão.
No famoso mito dos andróginos, os seres humanos, inicialmente, eram de três tipos: homem, mulher e andróginos. E também eram duplicados (dois em um só) e unidos pelo umbigo. Tínhamos então, dois homens “colados”; duas mulheres também unidas e, por fim, o terceiro tipo, os andróginos, juntos e de sexo opostos.
Reza o mito que Zeus, o soberano do Olimpo, observa-os e constata que são muito presunçosos, autossuficientes, felizes. Foi então que, preocupado e temendo que resolvessem escalar os céus e investir contra os deuses, decide enfraquecê-los dividindo-os ao meio para que, na busca desesperada por sua “outra metade” esqueçam do poder que possuem.
Eventualmente, quando qualquer um desses três tipos encontrava sua outra metade ficava tão embasbacada e feliz que não faziam mais nada a não ser pensar no ardor de se fundirem novamente: enlaçavam-se com seus pares e não se desgrudavam.
Ficavam inertes, pois nada queriam fazer longe um do outro. Resultado: ao menos um, morria de inanição. E o que sobrevivia, tornava a buscar novamente uma outra “metade”.
Foi então que Zeus, o ordenador do Cosmos, tomado de compaixão, temendo que se dizimassem, mudou-lhes o sexo para a frente, para que pudessem gerar novos seres.
Segundo esse mito, o amor entre almas gêmeas ocorre quando se encontra no outro uma parte que seja igual, idêntica àquilo que já se possui em si mesmo.
Predileções sexuais à parte, o amor entre os iguais (homói) é de uma ordem de ideias, de interesses comuns, e o grego hierarquizava o amor, colocando o amor espiritual acima do amor físico, sensual, carnal, por isso o amor platônico (ideal) é, nesse sentido, perfeito.
Não há como afirmar a existência de uma única alma gêmea. Polítropos, seres humanos são multifacetados e, ao antropomorfizarem os deuses, ou seja, dar-lhes características humanas, não fizeram mais do que retratar a si mesmos, em seus múltiplos anseios.
Os encontros e desencontros fazem parte do que se denomina “aspectos das divindades”. E como são diversos esses aspectos!
Há a divindade do erotismo, presidido pela deusa Afrodite e seu filho Eros (Vênus e Cupido), a divindade do matrimônio, deusa Hera (Juno), a presidir os amores legítimos, a divindade da desordem, do caos, do bacanal, da orgia, que é encabeçado por Dioniso (Bacco), o deus do vinho e do êxtase, e muitos outros.
Todos eles fazem parte de nossa psyché (Alma) e, certamente, existem almas que, num determinado momento de nossas vidas, estarão sendo “mais gêmeas” com a nossa alma que qualquer outra.
E, uma das coisas que nossa alma gêmea tem a nos ensinar, certamente é sobre nós mesmos: “Semelhante atrai semelhante”, afirma o inglês estudioso de magia do século XVII, Sir James Frazer em "O Ramo de Ouro".
Essa “alma gêmea” nos faz falta porque Eros, que personifica o poder de união, que é a maior dýnamis, potência do universo é dos deuses mais antigos e a tendência (do grego, pathós) do ser humano é se unir a outro alguém.
Obviamente, quando essa tendência se dirige a uma pessoa de forma muito insistente, ela se torna uma patologia, ou seja, uma doença. E doença do coração, da alma, só se cura com a lucidez da razão.
Sem dúvida, a primeira condição para que encontremos “alma gêmea” é que estejamos realmente ansiosos e dispostos a isso. Para exemplificar como essa sintonia e reencontro de almas pode acontecer, recorramos ao grande poeta Hesíodo (600a.C), que em sua obra “Teogonia” esclarece que Zeus é kydistos, pois possui o “Kydós”.
A palavra grega Kydós (variação de Niké, que é vitória) é uma derivante de Kleós (glória) é, portanto, um dos atributos de Zeus. Num combate entre dois guerreiros, àquele no qual Zeus encontraste o kydós (a marca da vitória) era destinado vencer, ou seja, o vencedor já até sabia que sairia vitorioso da batalha porque trazia a vitória dentro de si.
Do mesmo modo, estamos na vida como entidades livres, leves e soltas. A partir do momento em que acalentamos o interesse amoroso, o desejo de união em nós, certamente isso será captado e apreendido por alguém que também esteja se sentindo desejoso de amor. Eis o segredo! Ou melhor, não há segredo.
Convém esclarecer ainda que, embora esteja assentado para o senso comum que o amor platônico é o amor ideal e perfeito, ele é também irrealizável. Ao menos por um tempo muito longo: o amor platônico se dá no campo mental, na idealização do ser amado. Acontece que tudo isso é muito lindo e maravilhoso no campo das ideias mesmo.
Mas a realidade é que vivemos aqui na terra, sujeitos às mudanças, aos humores e à corrupção de Chronos (Saturno, o deus do Tempo). Somos perecíveis, enrugamos, envelhecemos, a perfeição se esvai com o tempo.
Mas isso não significa, necessariamente o fim do amor. Daí a necessidade de se ter maturidade para manter constância em cultivar o amor, não somente do corpo, mas sobretudo da Alma. E vale a pena. Até porque, na condição de mortais, como afirma Platão, será a ação (do Amor) o que garantirá alcançarmos a imortalidade que nos é possível.
Luciene Felix Lamy
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-romana
WhatsApp (13) 98137-5711
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