Historiadoras e teólogas feministas vêm recuperando as histórias de monjas da Idade Média que viveram com autonomia e protagonismo.
por Naiara Leão
4 de junho de 2018
Aos oito anos de idade, Hildegarda foi viver em um convento anexo a um monastério. Sua chegada foi celebrada com um ritual parecido com um funeral, simbolizando que a menina morria para o mundo para viver exclusivamente para Deus. Mas sua história não foi exatamente de clausura. Hildegarda de Bingen veio a se tornar uma das mulheres mais influentes da Europa na Idade Média.
Teóloga, escritora, compositora e estudiosa de plantas medicinais, ela se correspondeu com reis e papas, que pediam seus conselhos. Divulgou o conteúdo de visões e mensagens que dizia receber diretamente de Deus. Viajou pela Europa pregando em uma época em que só os homens ensinavam a palavra de Deus.
A história de Hildegarda retrata, ao contrário do que se pensa, a relativa autonomia que tinham as mulheres que se dedicavam à vida religiosa na Idade Média. “Para quem procurava liberdade, a vida religiosa era de fato uma boa opção. A mulher que não queria casar buscava essa vida”, diz a doutora em História Medieval e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), Carolina Fortes.
A história de Hildegarda retrata, ao contrário do que se pensa, a relativa autonomia que tinham as mulheres que se dedicavam à vida religiosa na Idade Média. “Para quem procurava liberdade, a vida religiosa era de fato uma boa opção. A mulher que não queria casar buscava essa vida”, diz a doutora em História Medieval e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), Carolina Fortes.
Ao reconstruir as origens do feminismo (o que a academia chama de protofeminismo) historiadores têm descoberto que, na Europa, foi no ambiente religioso que as mulheres buscaram autonomia e voz própria. “Algumas das primeiras mulheres europeias a falarem por si próprias e pelo seu sexo o fizeram dentro de um contexto religioso e em termos religiosos”, afirma Margaret Walters no livro “Feminismo: Uma Breve Introdução”.
A rotina da vida religiosa permitia às mulheres estudar, escrever e fazer trabalhos manuais, observa a professora da Universidade Fluminense. Em casos menos comuns, se tornavam administradoras de seus conventos e criavam uma rede de contatos e aliados. “Certas mulheres desfrutaram na Igreja, e devido à sua função na Igreja, de um extraordinário poder na Idade Média. Algumas abadessas eram autênticos senhores feudais, cujo poder era respeitado de um modo igual ao dos outros senhores; algumas usavam báculo, como o bispo; administravam muitas vezes vastos territórios com aldeias, paróquias”, escreve a historiadora Regine Pernoud, no livro “O Mito da Idade Média”.
A vida religiosa era praticamente a única possibilidade de desenvolvimento intelectual para as mulheres daquela época, segundo a professora de história e gênero da Universidade de Lisboa, Ana Maria Rodrigues. “Elas tinham acesso à algum tipo de educação, a bibliotecas e cópias de livros. Na medida em que pensavam e escreviam obras, tinham alguma voz”, diz a professora e doutora em história.
A mulher na Idade Média
A sociedade feudal foi, sem dúvida, patriarcal. Uma época dominada por homens: senhores feudais, cavaleiros, padres e monjes. A regra dominante na Idade Média era de que a mulher deveria ser submissa e dependente do pai e do marido, além de ser juridicamente tutelada. Neste contexto, os espaços reservados à mulher eram basicamente os privados: a casa paterna, a casa marital ou o convento.
Em uma época em que o pensamento foi amplamente dominado pela Igreja Católica, a visão que se tinha era de que a mulher era um perigo carnal e espiritual. A ideia da inferioridade feminina foi muito influenciada pela imagem negativa que a tradição judaica havia criado em torno da primeira mulher: Eva, um ser pecador, incapaz de resistir à tentação e, por isso, ela precisava da tutela masculina.
Quando começou sua vida pública, por volta dos 40 anos, Hildegarda de Bingen chegou a duvidar de sua missão pelo fato de ser mulher. Ainda que já fosse abadessa e administrasse um pequeno convento, ela não tinha certeza se deveria se posicionar como pensadora. Em cartas trocadas com um amigo, ela questionou sua capacidade e se deveria prosseguir com suas atividades consideradas não-femininas de ler, teorizar e escrever.
“Muitas escreviam cartas, vidas de santos e uma ou outra escrevia tratados. Embora seja pouco comum, a reflexão sobre serem mulheres, acontece. E o que a gente percebe é que a misoginia está também entranhada nelas, que tem uma visão negativa de si mesmas”, diz a pesquisadora Carolina Fortes.
Ela conta que os medievais pensavam que os corpos masculinos eram quentes e os femininos, frios. Isso faria com que os órgãos sexuais femininos ficassem para dentro, como se o canal vaginal e os ovários fossem o exato negativo do pênis e dos testículos. “Para o mundo pré-moderno existiria apenas um sexo, o masculino. A mulher seria um homem defeituoso porque os órgãos ficariam para dentro”, explica.
Controle do corpo
Mas foi justamente por meio de seus corpos, com o jejum e o celibato, que as religiosas encontraram um meio de resistência. Segundo a professora Ana Maria, da Universidade de Lisboa, as mulheres ganhavam respeito com o controle do corpo e da suposta irracionalidade e sexualidade feminina. “Essas práticas empoderavam as mulheres porque mostravam a capacidade que tinham de autocontrole, as aproximava de Deus e lhes dava a possibilidade de influencia. Pela fama de santidade, as pessoas lhes pediam opiniões e conselhos, o que lhes davam poder de influenciar outras pessoas”, conta.
Alguns estudiosos têm relacionado o jejum religioso medieval à anorexia e ao desejo de exercer algum tipo de controle sobre si mesmas. Referência no assunto, a pesquisadora das universidades de Harvard e Columbia Caroline Bynum conta no livro “Holy Feast and Holy Fast” (Banquete Sagrado e Jejum Sagrado, em uma tradução livre) que a alimentação era uma área de domínio feminino. Segundo ela, preparar banquetes ou se negar a comer eram duas faces de uma mesma moeda do desejo de auto expressão e controle sobre o próprio corpo.
A santa Catarina de Siena ficou conhecida pelos jejuns rigorosos e pela resistência ao casamento no século 14. Diante de um casamento arranjado, há relatos de que Catarina teria iniciado um duríssimo jejum, pratica aprendida com uma irmã mais velha. Em outra situação, ela teria cortado os longos cabelos em protesto à pressão para que melhorasse sua aparência.
Deus fora da caixa
O estudo das religiosas medievais tem mostrado uma concepção de Deus diferente da figura masculina que ficou perpetrada na história das religiões ocidentais. As teólogas feministas entendem que representar Deus no masculino representa uma legitimação simbólica da maior importância do masculino em relação ao feminino.
“Qual o interesse de estudar as beguinas e as bruxas? É mostrar que existiram outras concepções de Deus. Elas te abrem para pensar algumas coisas de forma diferentes da que a Igreja justifica a partir da vontade de Deus”, diz a teóloga feminista Ivone Gebara, freira pela Congregação das Irmãs de Nossa Senhora, doutora em Filosofia e em Ciência da Religião.
As teólogas feministas têm encontrado nos textos de Hildegarda, Teresa De Ávila, Marguerite Porete e das beguinas embasamento para refletir sobre uma concepção de Deus menos opressora. “Ao ler os tratados e até poemas escritos por mulheres da Idade Média, se nota que elas falam de Deus de uma forma poética, na natureza como a seiva da vida e da transformação, um grande mistério que não se encaixa em uma fórmula de um ser castigador e acima dos outros seres”, diz Ivone.
Segundo ela, o estudo da teologia feminina da Idade Média pode ajudar até a derrubar dogmas religiosos que sustentam a oposição da Igreja Católica a pautas como o aborto e a liberação sexual. “Aos estudá-las temos uma visão da tradição cristã muito mais ampla e rica do que a Igreja transmite como sendo única, mas que na verdade é herdeira apenas dos papas e do conhecimento produzido nas universidades”, diz a freira.
Feministas medievais?
Ainda que essas mulheres medievais se aproximem de alguns valores e práticas feministas atuais, elas não podem ser consideradas feministas, explicam as historiadoras ouvidas nessa reportagem. Isso porque o feminismo enquanto movimento social organizado é um fenômeno do século 20.
“O que as aproxima do feminismo atual é a tentativa de dignificar as mulheres, que tinham a mesma importância que os homens aos olhos de Deus. O que as diferencia é que elas não tinham um projeto de transformação da sociedade do ponto de vista político, mas sim um projeto de transformação interior”, afirma a professora Ana Maria Rodrigues.
Mas é justamente o movimento feminista que tem chamado a atenção para a necessidade do estudo das mulheres como sujeito histórico e, consequentemente, como objeto de estudo. Isso porque dentro de um mesmo período, a experiência histórica da mulher pode ser completamente diferente da experiência do homem. É dentro desse contexto que as histórias das protofeministas têm sido resgatadas.
“Sabemos menos sobre as mulheres do que sobre os homens do passado não só porque elas tinham menos condição de criar, mas também porque muito do que criaram não foi conservado porque eram materiais considerados menos importantes”, observa a pesquisadora Carolina.
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