Considerações de uma criança sem mãe
«Tenho 10 anos.Minha mãe foi estuprada e morta enquanto saía para sua caminhada matinal.Estou tentando me adaptar à nova vida com meu pai e o resto deminha família, mas está difícil. Meu pai é autoritário.Eu e minha mãe nos entendíamos muito bem. Ela sabia o que eu sentia e o que eu precisava.
O fragmento verbal acima é parte da fala de João (nome ficticio), tendo sido extraído do atendimento de uma família representada por três gerações. João é um garoto magrinho, talvez não tão desenvolvido se comparado aos de sua idade, mas que se destaca pela harmonia de seus traços e pela expressão vivaz de seu olhar. Sentado de braços cruzados, tronco recurvado, cabeça baixa, parece carregar o mundo nas costas. Sua linguagem verbal e não verbal são tão eloquentes que ele protagoniza facilmente o drama de sua família.
Não há palavras suficientes para tentar descrever o luto de uma criança pela perda de sua mãe. Do ponto de vista humano, isto não tem dimensão. Do ponto de vista psicológico se trata de uma profunda “incisão” psíquica, que deixará marcas indeléveis e irá mudar radicalmente os rumos do seu desenvolvimento. Um duro contato com a realidade que lhe impõe uma demanda extraordinária e fortemente intrusiva para um ego ainda em formação, antecipando-lhe precocemente exigências e prerrogativas da condição de adulto.
O que dizer sobre o significado do papel da mãe na vida de uma criança? A mãe é aquela que gesta, aquela que primeiro acolhe o pequeno ser no mundo encarregando-se de sua nutrição e de todos os cuidados necessários para sua sobrevivência; é quem proporciona a sólida referência do afeto e do amor incondicional; a fonte segura de alimento, aconchego, calor e proteção, aquela de quem partem todos os cuidados necessários para o desenvolvimento saudável de seu rebento até a plenitude. A pessoa, aos olhos da criança, que verdadeiramente se importa com ela, seu esteio, sua âncora, sua referência no mundo. Tais atributos, quando de fato vivenciados e colocados em prática, favorecem o engendramento de um vínculo de profunda intimidade e reciprocidade e é tudo que a criança necessita para sentir-se segura, amada e protegida.
Quando se instaura a condição abrupta de orfandade motivada pela perda definitiva de alguém a quem se é tão estreitamente ligado, isto se faz sentir na aguda consciência da falta, no vazio de proporções avassaladoras que maximiza um estado de desamparo permanente. Um fato desmesurável que impõe o tornar-se adulto mais cedo. Uma forma chocante de se fazer conhecer aos olhos de uma criança a dura realidade da vida, visto que neste caso específico, a morte da mãe se deu como consequência de extrema violência de outrem. Uma criança que até então, mesmo não vivendo num lar abastado, sonhava com o presente de Papai Noel e se divertia com seus heróis na TV, descobre de repente que o mundo, as pessoas, podem ser cruéis. É como se um pesado cinza/chumbo se instalasse de repente no firmamento, obstruindo a passagem dos raios solares e tudo se tornasse incompreensível e sem sentido (do ponto de vista psíquico, isto significa que momentaneamente parece não haver lugar para a reparação, imperando o caos, a confusão e a tristeza que envolve o luto). Um conflito entre o bem e o mal se impõe então fortemente: “Afinal de contas, as pessoas são boas ou más? Em quem posso confiar?”, deve estar se perguntando o garoto.
Flávia Penido (2016), em seu artigo sobre o Luto Infantil, a criança, ao constatar que a morte é irreversível, se sentirá triste, depressiva, receosa, e seu humor terá muitas variações. Mas logo após o tempo de luto e a dor da perda, ela irá começar, aos poucos, a se adequar às mudanças que aquela morte acarretou em sua vida e poderá aprender a lidar com a dor, apesar de não viver para ela.
Pensando no que fazer quando a criança enfrenta a perda definitiva de sua mãe, é fundamental que ela se sinta apoiada e acompanhada por aqueles que a cercam e que a amam incondicionalmente.
Segundo a autora, uma criança, ao se deparar com a morte de alguém tão próximo, terá dificuldades em lidar com o turbilhão de emoções que a invadem, e recorrerá aos seus modelos de referência para procurar aprender a lidar com sensações tão fortes. Deste modo, se os adultos também compartilharem seus sentimentos com as crianças, estas entenderão que a tristeza e o choro doem, mas isto permitirá que se sintam acolhidas ao terem o conforto daqueles que a cercam. Dar vazão ao choro, sentir a tristeza, são o primeiro passo para aliviar e lidar com a perda na tentativa de reparar a dor.
Independente dos esforços que sejam feitos pelos familiares para minimizar a dor de uma criança que perdeu a mãe, nada poderá substituir tal perda e ela sempre será sentida, mas o tempo pode agregar novas cores e novas maneiras de sentir a experiência. Além disso, o amor, associado ao tempo, é outro agente terapêutico da maior importância. Esse amor, quando baseado numa relação sólida e honesta com a criança, é o principal fator que lhe possibilitará lidar de forma eficaz com a infinidade de emoções associadas à perda, o que, em última instância irá ajudá-la a reconciliar-se com a vida e a descobrir que o mundo não é de todo mau, mas que também há pessoas boas e amorosas, nas quais se pode confiar.
É preciso compreender a vivência de perda da mãe no início da vida como processo dinâmico, não se podendo determinar ou prever como a criança que passou por esta experiência se desenvolverá quando adulta. No entanto, é sempre importante lidar com a experiência da perda e com a dor para poder ressignificá-las, enxergando-as de maneira diferente, de forma a integrá-las à vida.
Um sinal muito significativo, quando da perda de um ente querido, é que a saudade evocada pela lembrança daquele que se foi deixa de ser sentida como doída e passa a ser um doce sentimento; então, neste caso, a criança foi capaz de fazer a transição, elaborar o luto e dar seguimento à vida.
Ao longo dos atendimentos subsequentes à sua família, João revelou uma inteligência acima da média, um olhar muito observador, além de um ego forte que lhe possibilitou fazer com que agissem dentro e em torno de si as forças adaptativas para superação do trauma. Colocando-se novamente em equilíbrio com seu próprio eixo, conseguiu destituir-se de suas armas e conectar-se com a paz. Sua família foi capaz de realizar o mesmo movimento.
As forças construtivas conseguiram suplantar e se mostraram, neste caso, mais poderosas que as de destruição. Eros vence Thanatos, a despeito de tudo.
Referência:
- PENIDO, Flávia: «Luto Infantil. O que fazer quando a criança perde sua mãe?» Revista Infantil BH. Copyright @ 2018 Revista Planeta Kids, 14 de setembro de 2016.
Psicóloga psicodramatista, atua no SOS Ação Mulher e Família desde o ano de 1984. Doutora em Saúde Mental pela Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP. Autora do livro “Cenas repetitivas de violência doméstica: um impasse entre Eros e Thanatos”.
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