Entrevista tratou de como o medo de assédio e violência de gênero influencia a forma de ocupar a cidade
25 de junho de 2018
A entrevista aconteceu na Casa Pública, no lançamento do minidoc “Sob Constante Ameaça” e contou com as opiniões da urbanista e arquiteta Tainá de Paula e da fundadora do escritório coletivo de arquitetura “Terceira Margem”, Iazana Guizzo, com condução da repórter da Pública Andrea Dip.
Andrea Dip – Vocês acham que a cidade tem catracas para as mulheres? E essas catracas são diferentes dependendo das interseccionalidades?
Tainá de Paula – Vou me apresentar. Sou a Tainá de Paula, arquiteta e urbanista. E, na verdade, eu debato essas assimetrias de gênero a partir das desigualdades sociais postas. A cidade acaba sendo um grande território de opressão de um modo geral – de classe, raça e gênero. Inclusive, uma mulher, provavelmente negra, fala desse racismo e do machismo que sofre em um off do filme [o minidoc “Sob Constante Ameaça” exibido antes da conversa] e achei super interessante porque é exatamente isso. Uma mulher negra, de determinada faixa social e determinada idade tem a percepção da cidade de uma forma totalmente diferente que uma mulher branca de determinada classe social tem. Isso está posto, está colocado. E acho também que esse não pertencimento, essa catraca que nunca roda para as mulheres parte muito da não inserção das mulheres no próprio pensamento da cidade. Inicialmente, os primeiros planejadores, os primeiros construtores, os primeiros pensadores da cidade foram homens e, concretamente, elas foram pensadas a partir dessa lógica e dessa métrica. Se a gente for parar para pensar no Rio de Janeiro, mulheres ricas eram vistas no centro da cidade em determinadas ruas, onde elas poderiam comprar, Rua do Ouvidor e tal. Mas era da carruagem para casa, da casa para aquela rua e acabou. Quem trabalhava, quem exercia o comando e tinha livre circulação nessa cidade era o homem. E as mulheres negras pós-escravas, por exemplo, foram proibidas de circular “rebolativas”. Tem um decreto municipal que fala da forma como as mulheres negras rebolavam no centro do Rio de Janeiro, foram proibidas de andar “rebolativas”. Esse não pertencimento desse corpo feminino na sua plenitude, na sua forma completa de ser e estar, rebolando ou não, sendo força de trabalho ou não nessa cidade também criou a cultura desse não pertencimento. A mulher ter paridade nesse pensar urbano é fundamental para a gente definir outras formas de ser na cidade.
Iazana Guizzo – Eu sou da Terceira Margem, também sou arquiteta e urbanista. A Terceira Margem é um coletivo e escritório de arquitetura que se propõe a fazer de um outro modo esse pensar, em uma lógica que a gente defende como feminina. Eu queria chamar atenção, indo de encontro ao que você está falando para a espacialidade dos lugares onde vocês apresentam o filme, e que vêm justamente dessas entrevistas que você faz no início, onde as mulheres já dão a dica de que não querem habitar, não conseguem habitar, melhor dizendo. Eu fiquei pensando aqui que esses espaços não são desenhados nem para os homens. São espaços desenhados para os carros, para uma cidade que precisa circular, onde a mercadoria precisa circular. Então, são espaços que não são nem pensados para as pessoas. Então, qual é a lógica ali? A lógica é de uma cidade funcionalista, onde à noite, então, não tem uso, é uma lógica do automóvel, é uma lógica do desenho que não pensa a cidade, pensa um edifício isolado. E isso, para mim, acho que revela alguma coisa que é o espaço como produção de subjetividade, a gente desenha uma cidade que produz corpos funcionais, automáticos, que não estão sensíveis a determinadas questões, e isso tudo também é masculino. Quando você traz a ideia de que é pior para a mulher negra, com certeza é pior para a mulher negra. É pior para a mulher negra pobre? Com certeza é pior para a mulher negra pobre. É opressivo para os homens, é opressivo mais ainda para as mulheres, é opressivo mais ainda para as mulheres negras, é opressivo mais ainda para as mulheres negras pobres.
Andrea Dip – Sim, são essas interseccionalidades. Esses espaços são ruins inclusive para os homens, mas o homem, se deixar a carteira em casa, por exemplo, resolveu seu problema, que é o medo de ser assaltado. Se a gente estiver assim, do jeito que a gente está, sem nada no bolso, a gente vai ter medo de violência de gênero, que é outra coisa, é um outro medo. Daí gostaria de fazer outra pergunta: A gente faz essa discussão de que a cidade deveria ser mais pensada para as mulheres, um outro tipo de espaço, circulação, pensado uma outra maneira, mas esses espaços de confinamento são ameaçadores por conta da misoginia, por conta do social? Por exemplo, se a gente pensar esses mesmos espaços em outros lugares que talvez não tenham uma violência de gênero tão forte, será que eles são tão ameaçadores? De fato, a gente deveria repensar os espaços por conta da violência de gênero ou esses espaços são ameaçadores por causa dessa violência?
Tainá de Paula – Eu acho que são as duas coisas. A gente tem uma lógica misógina, um machismo estrutural, não debatido de forma suficiente na sociedade, e existe o que a gente chama de erro de projeto mesmo, deu errado. Uma coisa que me chamou a atenção [no filme] e que eu fiquei enlouquecida porque eu conheço uma empresa que faz exatamente aquele modelo de passarela de dois metros.
Andrea Dip – Gaiola, aquele gaiolão [passarelas fechadas mostradas no filme].
Tainá de Paula – Gaiola. Na forma como a sociedade se estabelece hoje, aquilo é um grande separador urbano, um grande enclave urbano, você não vê a pessoa que passa. E isso automaticamente se torna, nesse cenário de incerteza de segurança, claro, um ponto de insegurança central no tecido urbano desse território. E para as mulheres, nessa lógica misógina, passa automaticamente a ser um ponto onde a violência sexual pode ser aplicada e pode ser realizada. A gente também não tem um protocolo de segurança pública pensado para as mulheres, a Guarda Municipal deveria ter protocolo de segurança específico para violência de gênero e não tem. As criança têm, antigamente se tinha a figura do Guarda Municipal anti-capacitista para os possíveis portadores de deficiência da cidade, tem a Guarda Municipal, parte dela voltada para o turista, mas não tem Guarda Municipal especializada em violência de gênero. Então, as mulheres também precisam refletir sobre esse apagamento da condição feminina, dos corpos femininos. Paralelo a isso, eu acho também que existe na cidade, um pouco até do que já falamos, essa concepção de que estruturalmente a cidade é de todos, e todos é muita coisa, e todos vira ninguém quando você não repensa o planejamento urbano para os vários segmentos sociais. Acho que o planejamento urbano e os estudos preliminares de projetos de urbanismo e de arquitetura não refletem no Brasil as dificuldades e deficiências dos locais. As cidades que a gente tem hoje são um reflexo do nosso não-debate. A gente investe em transportes públicos de massa que não transportam determinada classe social, a gente tem metrô, o VLT, quantos negros conseguem pagar transporte público no Brasil e no Rio de Janeiro, especificamente, que é um dos transportes mais caros e mais não-inteligentes? A plateia começa a rir e o riso é de nervoso! Do ponto de vista de segurança das mulheres, as estações de trem são recordistas no índice de estupro ou de assédio, porque a partir de determinado momento ou horário elas ficam totalmente escuras em um perímetro de 600 metros. São Paulo tem um estudo de planejamento super interessante sobre mobilidade incluindo as mulheres, e está provado que as mulheres andam muito mais a pé, porque levam seus filhos na escola, nos postos de saúde, e a cidade não está preparada para isso. Acho que não está no projeto, não está no planejamento porque existe uma lógica estrutural que é machista e que nega o debate. E se eu não tenho debate, eu não tenho o reflexo disso no projeto.
Iazana Guizzo – Eu acho também que é uma combinação. Um fato que eu acho que é claro é: cidade vazia é cidade perigosa. Então, se a gente tem uma combinação social, machista, que leva à violência, se isso estiver vazio, vai ser perigoso.
Andrea Dip – Ou com muitos homens, né? Porque as mulheres também falam isso, “eu não passo onde tem muito homem”.
Iazana Guizzo – Sim, já sou acuada, né? Então, esse desenho de cidade que é uma cidade que não tem gente, não tem circulação. Eu falo isso porque eu tive a oportunidade de fazer um doutorado-sanduíche na França e foi uma coisa que me chamou muito a atenção, que lá cidade vazia é cidade segura, mesmo em Paris. O meu corpo não aceitava isso porque eu já entrava em estado de alerta, exatamente isso que a gente viu no filme. Respondendo bem diretamente a sua pergunta: acho que, evidentemente, uma certa espacialidade tem a ver, mas combinada com um certo arranjo social, cultural de um território. Uma coisa é a gente ocupar a cidade que está aí, o que é quase como uma espécie de redução de danos à situação que a gente vive, que é de não poder ocupar essa cidade. Vamos dizer assim, uma cidade feita por um pensamento funcionalista, machista, autoritário, capitalista. O que é defender uma cidade das mulheres? O que é isso? O que seria um desenho produzido por uma outra lógica? Esse desafio, eu tenho pensado nele há um tempo, e me evoca muito a ideia de a gente pensar uma outra cosmovisão com isso. Quando o Eduardo Ribeiro de Castro vai falar de uma perspectiva ameríndia em relação a uma perspectiva eurocêntrica, e que ele vai dizer “O que é o rio? É uma entidade”. Nessas cidades em que a gente está vivendo são esgotos, começa por aí, como é que uma entidade vira esgoto? Porque eu acho que defender uma perspectiva feminina é defender uma perspectiva da terra. Das árvores, dos rios, de um certo modo de estar no mundo que não é um… o Eduardo vai falar isso em relação à perspectiva Yanomami, a diferença de enxergar a Terra como um ser vivo, que respira, em contraponto a um lugar de onde eu extraio materiais e deposito lixo tóxico.
Andrea Dip – Vou aproveitar que você propõe isso e perguntar a mesma coisa para a Tainá: como seria uma cidade pensada para as mulheres?
Tainá de Paula – Em uma lógica utopista de cidade, que é tão importante para os urbanistas principalmente, a gente precisa fazer o exercício de ir na radicalidade do projeto para conseguir voltar no possível, e é um exercício que eu costumo fazer muito. Como lógica utopista de cidade, acho que a gente pode pensar cidades obviamente inclusivas e cidades que sejam, na sua gênese, fontes de transformações sociais, e que as pessoas consigam escolher, vivenciar e dividir as suas transformações, que isso seja um processo coletivo. Isso tem que ser feito de uma forma horizontal. Acho que o urbanismo africano vem ensinando muito isso, de como você usa matrizes culturais e matrizes sociais para pensar e refletir como eu ocupo esse território de uma forma que pode ser espontânea, em certa medida, mas que necessariamente escuta esse povo e essa forma de pensar e agir. Lá é muito comum a gente ter casas de parto junto com biblioteca, junto com escola, que é junto com unidade habitacional, esses espaços não podem ser tão pensados de forma funcional e distante. É fundamental ter uma cidade que não exclua isso, como é o caso das cidades brasileiras por exemplo, que investiu ao longo dos anos nessa lógica casa grande/senzala, e só substituiu para cidade satélite/centro altamente urbanizado e descaracterizado da sua potência original de subúrbio, cidades do interior, de cidade periurbana, que nos afasta de uma lógica de agricultura familiar, que nos afastou de uma lógica de tempo maior com a família. A gente precisa pensar em como essa nova urbanidade, essa nova forma de ocupação acabou nos distanciando do que é esse ser brasileiro, que é o sujeito que plantava mandioca no seu quintal em Quintino e agora não planta mais porque vendeu metade do lote ou criou-se um prédio no lugar daquele lote maravilhoso que ele tinha. E não só a classe média, mas os pobres tiveram muito impacto nessa mudança, nessa transformação da forma de moradia e como se alimenta, como vive, como se relaciona. A gente está no Rio de Janeiro, onde a Rocinha tem esse nome porque concretamente as pessoas tinham roçados nos seus lotes. Eu acredito muito nesse retorno não dessa imagem lúdica, perdida ou dessa caricatura desse viver brasileiro, mas em uma outra possibilidade, em outra forma de vida mais espaçada, que possibilite, por exemplo, crianças conseguirem ter acesso a ensino integral que funcione como um CEU, que permita um outro ritmo e outro acesso a várias culturas e a sua própria cultura, que permita que eu tenha hortas orgânicas internas nesse lote. Eu acredito que a estrutura urbana tem que ser injetada de lembretes e marcadores de uma vida possível. E a gente precisa começar a pensar esses espaços como potencial de transformação. E nessa estrutura capitalista do carro, que a Iazana colocou muito bem, que exclui homens, mulheres, crianças, todo mundo, a gente precisa criar os espaços de respiro que sejam verdes ou que sejam espaços coletivos.
Andrea Dip – Voltando um pouco, como vocês acham que essa violência de gênero, com todas as suas interseccionalidades, se imprime nos nossos afetos, como ela se imprime na forma como a gente se relaciona com a cidade, de forma subjetiva?
Iazana Guizzo – Eu acho que o nosso corpo é produzido. Não há uma naturalidade, não somos naturais. Eu aposto em uma produção de subjetividade. Então todas as nossas práticas, os encontros ao longo da existência vão produzindo um certo modo de estar no mundo, uma certa maneira de sentir, de ver, de viver, de pensar, nada disso nasceu com a gente de fato. Há perspectivas que pensam isso, eu não penso, e a beleza de pensar assim é que a gente pode mudar, não há algo determinado, fechado em si. Então, nesse sentido, a produção do corpo da mulher é absolutamente tomada por machismo desde o início. se a gente começa a cavoucar, e acho que esse levante feminista está super forte, e a gente começa a conversar sobre isso, e a gente começa a pensar uma série de acordos tácitos que vão fazer com que nós mesmas nos causemos alguma espécie de repressão sem que isso precise ser dito. Você pega um relacionamento entre homem e mulher, por exemplo. Uma série de condutas que você toma sem ninguém ter te pedido para tomar, mas é adequado, é correto, é visto com bons olhos, é uma produção da sua família, é uma produção do bairro, é uma produção da novela, é uma produção do cinema, está em todo lugar. Como a gente vem disputando a cidade, quando você transgride algum desses acordos tácitos é que você percebe que ele é um acordo tácito. Nessa ocupação, nessa disputa pelo seu corpo, “meu corpo, minhas regras”, você vai, então, se defrontar com isso. Acho que a Tainá que sabe esses dados mas o Brasil é um dos países mais machistas do mundo, e a violência contra a mulher está muito longe de ser só de chegar às vias de fato, de chegar a ser estuprada, por exemplo. A violência está em não poder existir, não poder ocupar os lugares, ou quando pode ocupar, tem que ocupar na lógica masculina. Se eu sou arquiteta, eu sou arquiteta do concreto, eu uso roupas pretas, roupas específicas, sigo a linha de uma determinada arquitetura que garanta que as coisas reconheçam “ah, ela com certeza é arquiteta”. Mas vai você experimentar um modo singular de fazer as coisas. Porque eu acho que, quando a gente se coloca como minoria, e aí em um sentido deleuziano de se colocar contra o hegemônico, o menor é o que não está dado, é o que não é o modelo hegemônico, é o contra-hegemônico, só te resta a experimentação, e a experimentação vai sempre ser, de alguma maneira, desconfiada, errada. Dua mulheres andando na rua de mão dada, mulher saindo de maiô no Carnaval, que absurdo!
Andrea Dip – Mulher andando sozinha à noite. Você só precisa estar ali, seu corpo ali à noite já é errado, já é estranho.
Iazana Guizzo – E aí o bonito é que a cada coisinha dessa que a gente faz, a gente disputa a cidade. É uma disputa, é uma resistência é é o instaurar de um outro modus operandi ali na cidade. Por isso que é tão importante esse levante, tão importante a gente se encontrar, tão importante a gente de fato instaurar outras práticas. A disputa pela bicicleta na cidade também tem a ver com isso, entre outras coisas.
Pública – Vocês acham que esse medo é consequência de uma sociedade patriarcal, consequência de uma misoginia, no sentido de “por ser assim, estamos com medo” ou vocês acham que isso é uma ferramenta de dominação? Que isso não acontece por acaso e não é por acaso que a gente tem medo de andar na rua, que mandam a gente para casa, que não ocupamos os espaços que achamos que deveríamos ocupar. Vocês acham que isso é uma consequência dessa misoginia ou que isso é uma ferramenta de dominação de fato?
Tainá de Paula – De novo, acho que são as duas coisas, mas acho que esse modelo da dominação está diretamente ligado à opressão e à lógica machista de pensar esse corpo feminino. E aí, falando também do meu lugar de feminista marxista, e achando que a grande sacada do capitalismo é transformar o corpo da mulher em mercadoria em determinado ponto, em certa medida, seja ela passada através de um dote, seja ela sendo valorizada pela existência ou não de um hímen, seja ela sendo valorizada a partir de uma pele diáfana, pelas formas como ela se sociabiliza, se estão próximas de uma certa cultura eurocêntrica, e aí na lógica de aproximação de uma teoria branca, eurocêntrica, indo no gráfico, uma mulher negra pós-escrava, está na base dessa pirâmide de ranking entre mulheres, e a lógica de ranqueamento de corpos é uma lógica extremamente machista porque homens não passam por esse ranqueamento, na lógica capitalista todos estão em pé de igualdade, na lógica meritocrática, porque a gente sabe também que não existe esse igualdade entre os corpos de homens também. Algumas feministas colocam esse debate de que homens também passam por essa lógica patriarcal, esse marcador. Eu não chego a tanto, mas concordo que existe um debate a ser feito em relação ao corpo masculino também, e é um debate que eu faço por exemplo em relação aos corpos de homens negros, à luz do hiperencarceramento, genocídio da população e principalmente dos jovens negros. Mas voltando às mulheres, acho que esse isolamento das mulheres na categoria “mercadoria” fez com que, concretamente, isso fosse reproduzido na sociedade como objetificação. E aí, pegando esse objeto que ganha valor maior ou menor do ponto de vista financeiro, de potencial econômico que pode ser extraído naquela mercadoria, as mulheres se acostumaram consciente e inconscientemente a se tratar e se autorreferenciar na sociedade como objeto. Então a cultura da estética, a cultura do ranqueamento entre mulheres, isso tudo na verdade são subitens, sub-caixinhas nessa lógica capitalista de pensar os corpos. Eu sou uma feminista anticapitalista por essência, nosso gargalo central está aí. Por isso que em determinados momentos, quando eu vejo o feminismo caminhando para uma lógica muito liberal de pensar a individualidade, eu me incomodo muito. É claro que também não devemos perder de vista a garantia da identidade, e aí eu falo também do meu lugar de fala de mulher negra, vejo também que foi muito importante o feminismo negro pensar esses corpos individualmente e pensar a sua própria identidade. A gente precisa, no campo do mulherio preto, pensar nessa nova estética, que foi uma estética negada e que a gente tem que dar conta e dizer “não vamos questionar o tombamento da Karol Conká, deixa ela ser rica e poderosa porque é o que temos”. Se a gente for começar a criticar esse tipo de individualidade, a gente também precisa discutir antes por que é que essa individualidade foi negada, um pouco por aí. Por que é que esse corpo perdeu importância e agora ele exige uma importância, que é um pouco esse marcador que a gente precisa entender também. Mas acho que estamos em um momento, e eu tenho muita dificuldade de falar aqui “a culpa é da Primavera” porque as feministas históricas ficam uma arara comigo, mas a gente está em um momento que ainda é uma grande “ondona” da Primavera, a gente não pode deixar de falar sobre isso. A minha saída do armário está muito marcada na Primavera. Eu sempre fiz um namoro com o movimento de mulheres, principalmente as mulheres negras, mas é a partir da onda da Primavera que eu vejo, não só eu, mas várias outras mulheres se reivindicando mulheres feministas, no meu caso, mulheres feministas negras interseccionais. Acho que o clique é muito latente nessa época, e no Brasil não é diferente. E acho que a gente tem que surfar literalmente nessa onda para transformar esse novo comum, de a mulher não se entender, não querer se garantir como mercadoria.
Maria Bia – Onde é que entra, na visão de vocês, o direito das pessoas em situação de rua? E, dentro desse quadro, o direito das mulheres e crianças que vivem em situação de rua?
Pablo – Tenho uma professora que veio da República Tcheca que fala que, ao vir para o Rio, teve que aprender a ter medo da cidade, que lá ela não tinha medo da cidade. Mas, ao mesmo tempo, trata-se de um país do Leste Europeu tremendamente conservador e com um problema sério de tráfico humano e violência doméstica, o que leva o Brasil a ter a peculiaridade do assédio na rua como uma coisa muito forte na questão da misoginia. A demonstração da misoginia se dá pelo assédio, enquanto outros não são necessariamente assim, mas também são conservadores.
Iazana Guizzo – Se a gente tivesse uma cidade mais democrática, uma cidade minimamente estruturada, a gente não teria tanto esse modo de morar que, por um lado, nas condições em que a gente está, vive muita opressão, todos nós convivemos com isso. É gritante o aumento da população de rua no rio. E demonstra muito que isso não é uma questão só de opção, mas também pode vir a ser. E aí, acho que é essa a sua pergunta, a possibilidade de dar diferença em qualquer radicalidade desde que ela não seja fascista, se não vira um relativismo fascista, que também é um perigo. Mas uma garantia de que é possível habitar a cidade de muitas maneiras, inclusive questionando a cidade, o que eu acho que também tem nesse modo de morar, e que não é de hoje. A Grécia Clássica tinha essas figuras já para questionar. E aí, esse debate entra como por exemplo outros debates que trazem um pouco isso, que é a luta antimanicomial, por exemplo, que vai dizer assim “nos interessam diversos modos de viver, não só porque ‘ah, que legal, a gente não vai prender as pessoas que são diferentes'”, o que seria o mínimo, mas porque esses modos de vida singulares nos interrogam, nos colocam questões, nos deslocam desses modos absolutamente automáticos de viver. Então a diferença nos interessa enquanto cidade, quanto mais diferença, mais produção de criação, de liberdade, de existência.
Tainá de Paula – Acho exatamente isso, e acho que o Estado precisa ser, falando claramente, aparelhado para lidar com as diferenças e as multiplicidades. Se a gente pega estados liberais, e aí falando de Estados Unidos de novo, a população de rua norte-americana, tem um trabalho de assistência social muito bem estabelecido que lida com essa diversidade. Existem hotéis públicos, abrigos públicos, modelos de praça-abrigo. Existem outras formas de você lidar com a população de rua que não o aprisionamento, que não a locomoção para outro município, que é uma prática fascista clássica do Rio de Janeiro especificamente. E São Paulo agora com o Dória, meus pêsames. Internação compulsória, criminalização automática, esterilização compulsória, incêndio, enfim. Existem práticas concretas, estabelecidas, e outras veladas, que são automaticamente inseridas nesse estado enlouquecido, fascista que a gente tem hoje. Acho que a gente precisa ampliar o debate, pegando o gancho também da população de rua, de como essas formas não estão visibilizadas porque nós não fazemos o debate do tema. Não existe lá grandes comoções quando mendigos são removidos, por exemplo. Pelo contrário, as pessoas ligam para que os seus mendigos, a população de rua seja removida dos bairros. Eles são alocados para outro bairro, para outra cidade. Precisa estabelecer também a discussão coletiva desse modelo do Estado, e aí pegando o gancho de quem falou de como esse Estado dialoga, como esse Estado atua, ou quais políticas públicas esse Estado deveria tomar. O Estado, gente, infelizmente é o reflexo de como a sociedade se estabelece e se comporta. Se temos uma sociedade racista, automaticamente esse Estado será racista. Se temos um Estado fascista e conservador, automaticamente esse Estado será fascista e conservador. Existe uma ocupação da elite burguesa escravagista, homofóbica e racista? Existe. Mas existe também o período curto, mas existente e democrático nesse país, e já vimos, estamos vendo que é através do voto, o pior da nossa sociedade foi catapultado para esse lugar da institucionalidade.
Andrea Dip – Inclusive o Congresso mais conservador…
Tainá de Paula – … visto antes na história desse país. É importante a gente falar sobre isso porque se, de fato, existe a máquina econômica que gera quadros e faz com que esses quadros ocupem os espaços de representação, existe um não incômodo social sobre esses quadros. Ninguém sai pedindo a cassação do Bolsonaro, por exemplo. Nenhum petição pública, nenhuma comoção, no seio da sociedade, discutiu a atuação do Bolsonaro nos últimos quatro anos de Congresso. Ao contrário, ele tem um índice considerável de votantes e ainda não está em campanha eleitoral. É só a imagem dele que está sendo projetada e, infelizmente, as aberrações que ele fala. A gente precisa discutir com a sociedade, existe uma tarefa social a ser feita, e o conservadorismo está encontrando brechas e formas de se consolidar. No meu ativismo feminista eu acompanhei, no último ano, as aprovações dos planos municipais e estaduais de Educação, na rede feminista nacional. E saibam vocês que em 86% dos municípios que estruturam o estado do Brasil a palavra “gênero” foi retirada dos planos municipais de educação, inclusive nas casas legislativas do Rio de Janeiro. É importante a gente falar sobre isso. O plano municipal da cidade do Rio de Janeiro tem frases do tipo “gênero alimentício nas escolas”, e a frase ficou “alimentício nas escolas”, porque a assessoria da base legislativa conservadora sentou no computador, deu um “find”, “excluir” todo o conteúdo da palavra “gênero”. A gente precisa discutir no seio da nossa sociedade, nessa estrutura que a gente tem, o que está acontecendo. Porque isso só foi possível porque, de certa forma, a sociedade não discute gênero, então tudo bem tirar essa palavra’. Mas é essa palavra que gera e possibilita a discussão de violência sexual, a discussão de violência de gênero, a discussão da violência doméstica, a discussão das assimetrias de gênero e todas as identidades. Ou eu não posso falar sobre identidade nas escolas? Não, não posso. E acho que só através de um acesso ao sistema de educação e ao sistema de formação cultural para esse país é que a gente vai conseguir, na base estrutural, conseguir fazer essas modificações. Eu não sei como uma rede educacional que está construída dessa forma, atrelada a uma PEC do Teto que congela durante 20 anos investimento em saúde e educação vai construir as mentes pensantes desse país. Eu tenho muito medo.
Andrea Dip – Isso sem nem entrar nos projetos de Escola Sem Partido.
Iazana Guizzo – Sem nem entrar no Ensino Superior também.
Tainá de Paula – Sim. Então, eu acho que o caso é grave. A gente pode até ter uma onda feminista que a gente tem que surfar horrores nessa onda e transformá-la em um maremoto, mas o ataque ao modelo contrário, o backlash disso é enorme, e a gente está longe de se organizar como, por exemplo, as argentinas se organizaram nesta semana. Dois milhões de mulheres na rua em um frio de cinco graus.
Andrea Dip – Passaram a noite.
Tainá de Paula – Sim, 24 horas. Isso é estrutura social, mobilização social, e muita discussão coletiva sobre os temas. Acho que essas microrrevoluções só acontecem com grandes mobilizações sociais.
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