Primeira a narrar um jogo de Copa no Brasil, Isabelly Morais, de 20 anos, não se intimida com reação machista de torcedores e levanta a bandeira por mais mulheres na narração
São Paulo
El País
Há quatro anos, Gabriel Jesus enfeitava as ruas de seu bairro para a Copa do Mundo e hoje veste a camisa 9 da seleção brasileira na Rússia. Também há quatro anos, Isabelly Morais, então estudante do último ano do ensino médio em Itamarandiba, cidade de 30.000 habitantes no interior de Minas Gerais, tomava canjica para espantar o frio enquanto tentava digerir a goleada de 7 a 1 que o Brasil acabara de sofrer da Alemanha. Nem poderia imaginar que, em tão pouco tempo, se tornaria a primeira mulher a narrar uma partida de Copa na televisão brasileira. “Tudo aconteceu muito rápido na minha carreira”, conta a narradora de 20 anos.
O nome de Gazinsky nunca mais sairá de sua memória. Foi o meia russo quem marcou o primeiro gol deste Mundial – consequentemente, o primeiro narrado por Isabelly. Ao lado de Manuela Avena e Renata Silveira, a mineira é uma das três narradoras escolhidas em um concurso do canal Fox Sports para trabalhar na cobertura da Copa. Porém, embora seja a mais jovem do trio, ela já demonstra segurança e bom repertório de profissional experiente. Em suas transmissões, recheadas de informação sobre o histórico e curiosidades das equipes – como o número de titulares da seleção criados apenas pela mãe –, identifica com precisão os jogadores que participam dos lances, algo em que até os veteranos da narração costumam tropeçar.
Antes de estrear na televisão, Isabelly já trabalhava com futebol em seu Estado. Em novembro do ano passado, ela havia feito história como a primeira mulher a narrar um jogo em Minas Gerais, pela rádio Inconfidência. Em apenas quatro meses como estagiária, convenceu José Augusto Toscano, coordenador de esportes da emissora mineira, de que poderia romper com a hegemonia masculina no meio. “Sou muito grata ao Toscano pela oportunidade que me deu. Muitas vezes, isso é o que falta para as mulheres: uma chance de mostrar que podemos atuar em qualquer área, ainda que seja dominada pelos homens.”
Ela sempre gostou de futebol. Empolgava-se toda vez que o avô reunia os amigos em casa para assistir jogos aos domingos. Jogou bola quando criança, mas se destacava mesmo era nas Olimpíadas de matemática, arrebatando medalhas por sua facilidade com os números. No entanto, por influência de amigas, que exaltavam a fluência que ela tinha ao apresentar trabalhos na escola, decidiu prestar vestibular para jornalismo. “Percebi que poderia conciliar essa facilidade de me comunicar com uma grande paixão, que é o futebol”, conta.
Depois de estudar a vida inteira em escola pública, foi aprovada no curso de comunicação social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 2015. Pela primeira vez, deixava Itamarandiba para viver na cidade grande, em Belo Horizonte. E lá realizou seu primeiro sonho: ver um jogo de futebol no Mineirão que, até então, só conhecia pela TV. Mas sua estreia na locução esportiva aconteceu em outro estádio. No Independência, narrou a vitória do América sobre o ABC, pela segunda divisão do Campeonato Brasileiro. Apesar do nervosismo ao entrar no ar pela primeira vez, agradou à direção da rádio e também a muitos ouvintes, que inundaram suas redes sociais de mensagens.
Algumas delas, porém, traziam críticas machistas e ofensivas ao seu trabalho. “Teve um cara que disse: ‘tira essa puta daí’. Enquanto a narração dos homens é avaliada pela qualidade, muita gente me critica simplesmente por ser mulher. Óbvio que é diferente uma voz feminina nos jogos. Tudo que é novo causa estranheza. Ao longo de 20 Copas do Mundo, por exemplo, só os homens narraram aqui no Brasil. Não deveria ser estranho uma mulher narrando futebolno rádio ou na televisão. Mas acredito que essa cultura está mudando. Um dia vai ser natural ouvir um jogo com a narração de mulheres.”
O avô que a ensinou a gostar de futebol morreu bem antes da neta virar narradora, assim como o pai, que ela perdeu com apenas 4 anos. Entretanto, a mãe, sua grande incentivadora, não se segura de tanto orgulho na pequena Itamarandiba, onde Isabelly se tornou uma referência. “Depois que comecei a narrar, as pessoas já me reconhecem na rua, param pra me dar os parabéns. Alguns chegam perguntando: ‘você é a narradora, né?’”, conta. As visitas à cidade se tornaram menos frequentes nos últimos meses. É que ela ainda está no penúltimo ano da faculdade. Desde março, conciliava as aulas com o estágio na rádio e idas semanais aos estúdios do Fox Sports, no Rio de Janeiro, para cumprir as etapas de preparação do concurso. “Minha vida mudou muito. E também minha narração. Tenho evoluído bastante.”
Além de se formar como jornalista, Isabelly pretende seguir desbravando seu caminho pelo esporte. Sonha cobrir uma Olimpíada e narrar um gol de Gabriel Jesus ainda nesta Copa, de preferência na final. “A história dele se parece com a minha”, diz. Mas, acima de tudo, ela espera que seu pioneirismo se converta em mais espaço para as mulheres no futebol. “Eu sei o que é a força transformadora de uma oportunidade. A gente luta por representatividade, para que a mulher não seja ridicularizada ao exercer sua profissão. Tomara que meu exemplo ajude a abrir portas para outras”, discorre, com o ritmo acelerado de quem narra a própria trajetória como se fosse um lance de gol. “Vejo um horizonte muito promissor para narração feminina.”
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