Quinta-feira, 7 de junho de 2018
Mulher negra, mãe, presa provisoriamente e com risco 20 vezes maior de cometer suicídio do que a população em geral. Este é o perfil definido pelos principais dados do Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias) e cruzamentos de outros estudos, como por exemplo, a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio), que gerou o Infopen Mulheres.
A segunda edição do levantamento com recorte de gênero apontou que houve aumento de 445% no aprisionamento feminino em 16 anos, ante um aumento de 293% para os homens no mesmo período. Das mulheres, 62% das encarceradas são negras, 74% são mães e 45% são presas provisórias, aquelas que ainda não foram julgadas, cujos crimes mais recorrentes são o tráfico de drogas e o roubo.
O ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania) reuniu uma equipe para analisar os dados. “Acho que a avaliação mais básica é de como o Estado brasileiro é penal, autoritário e violento, e que não tem tido capacidade de lidar com os conflitos sociais – evidentes em uma sociedade desigual – fora da esfera penal, com respostas mais sociais do que policiais”, afirma a cientista social e integrante do ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania) Mariana Camara, em entrevista à Ponte. No entanto, o instituto aponta lacunas com relação à representatividade de alguns números.
“A formulação de uma pesquisa para verificar a realidade do sistema prisional brasileiro é um desafio, a começar pelo envolvimento de todos os estados na produção dos dados. Embora tal envolvimento seja indispensável para a construção de um cenário nacional e para avaliações em nível estadual, nem todos se engajaram igualmente nas diferentes etapas. De acordo com o Infopen, 4 estados não participaram da validação do levantamento, na segunda parte da pesquisa, enquanto 5 forneceram dados de apenas parte de seus estabelecimentos”, aponta publicação do ITTC.
Outro ponto a ser considerado dentro desse mesmo desafio é o modo como o tema da maternidade foi trabalhado na pesquisa. “O que chamou nossa atenção é que o Infopen tirou esse número [74% das presas são mães] com uma amostra muito pequena das mulheres, só de 7% [que representa 2.689 pessoas em um universo de mais e 42 mil mulheres]. Não sabemos se para o próximo Infopen está prometida uma amostra maior – até porque isso tem sido cada vez mais importante para os trabalhos de advocacy, esses números de mulheres mães”, pontua Mariana.
Para a cientista social, os dados sobre suicídio são alarmantes. “A taxa de suicídios dentro dos presídios, de 48,2 para cada 100 mil mulheres é alta. O total nacional é de 2,3. O dado é evidente por si só, mas revela como o sistema prisional é perigoso para as pessoas que passam por ele. A gente já sabia que a vulnerabilidade aumenta, que questões de saúde, alimentação, situação psicológica, tudo isso é posto em risco”, explica. “Tem uma questão da responsabilidade do Estado sobre a vida das pessoas, que precisa ser avaliada, refletida, mas também é evidente que esse é um ambiente inóspito, cheio de possibilidades de violação em todos os níveis. Um lugar feito por e para o controle e a repressão. Muitas também só sobrevivem lá dentro a base de remédios, mas às vezes nem isso é suficiente pra se alienar completamente dessa realidade. Tirar a vida é muito grave”, segue.
Outro aspecto apontado por Mariana é a quantidade de presas provisórias: 45% das mais de 42 mil mulheres, o que segue, inclusive, a lógica do sistema prisional masculino. Ela lembra que, desde 2015, as audiências de custódia foram implementadas tendo em vista a diminuição desses números, que contrariam as normas legais do uso da prisão provisória como exceção, nunca a regra. “Além das audiências de custódia, foram implementadas as medidas cautelares, assim como uma série de dispositivos internacionais vem sendo acionados para desencarcerar mulheres nesse regime de prisão preventiva. E o número não só não caiu, como aumentou”, afirma. A cientista social do ITTC atribui o cenário a uma cultura punitivista do judiciário. “Esse é um dos maiores desafios, mudar a mentalidade do judiciário ou garantir que, tendo criado os mecanismos, haja um real impedimento do uso abusivo da prisão provisória”, diz Mariana Camara.
Fronteiras do crime
Outro dado que merece destaque são os estados com maior taxa de aprisionamento – para cada 100 mil mulheres: Mato Grosso do Sul (113), Amazonas (92,3), Rondônia (82,3) e Acre (71,1). A título de comparação, a taxa de aprisionamento nacional fica em 40,6. O estado de São Paulo concentra 36% de toda a população prisional feminina do país, mas aparece no 6º lugar na lista dos estados com maiores taxas de aprisionamento, com 66,5 mulheres presas em cada 100 mil mulheres. Para a cientista social do ITTC, Mariana Camara, as taxas podem ter ligação com o fato de serem zonas de fronteira. De acordo com o levantamento, 3 em cada 5 mulheres do sistema estão presas por crimes relacionados ao tráfico de drogas. Ao mesmo tempo, os estados do MS e AM concentram a maior quantidade de presas estrangeiras.
“Pela nossa experiência aqui no estado de São Paulo, o tráfico internacional de drogas é o responsável pela maioria das mulheres estrangeiras presas. Apesar do Infopen fazer uma escolha metodológica de recortar as estrangeiras por continente, não por país, a gente também sabe que são mulheres vindas dos países mais pobres dos seus respectivos continentes”, explica Mariana Camara. “Aqui em São Paulo, são mulheres da África do Sul, da Bolívia, da Venezuela que chegam, presas por esses transportes de ilícitos. Muitas estão acostumadas a transportar outras coisas, como mercadorias variadas, e acabam transportando drogas. Algumas são coagidas. Outras fazem porque precisam mesmo. A desigualdade de gênero também afeta forte essas mulheres, que vem muitas vezes em condições de vulnerabilidade grande, com drogas no estômago”, analisa.
Maternidade atrás das grades
Com relação às presas que são mães (74%) ou que estão grávidas (536 presas em todo o país), uma das dificuldades é a manutenção das relações entre mãe e filho e a ausência de instalações adequadas para receber uma gestante. Das 351 unidades prisionais onde há mulheres em todo país – 107 femininas e 244 mistas -, apenas 55 possuem essa infraestrutura específica. “A manutenção do vínculo familiar é prevista em lei e não tem como viver a maternidade, a convivência com os filhos, dentro do cárcere. Muitas até preferem não receber visita dos filhos, por vergonha. De certa forma as unidades podem vir a oferecer condições de convivência, mas a questão é a qualidade dessa convivência. Majoritariamente, o cárcere desestabiliza muito os vínculos familiares mesmo, tirando ainda uma peça muito importante, quando não a mais importante, que é a mãe”, explica Mariana Camara.
Em fevereiro deste ano, o STF concedeu um habeas corpus coletivoconvertendo as prisões de mulheres em domiciliar para os casos de grávidas ou mães de filhos com até 12 anos. Em maio, balanço divulgado pela Defensoria Pública de São Paulo, apontava que mais de mil mulheres mães já foram beneficiadas – isso apenas no estado de São Paulo. A decisão aconteceu uma semana depois da polêmica detenção da desempregada Jéssica Monteiro, de 24 anos, que estava prestes a dar à luz. Acusada de tráfico de drogas, Jéssica acabou entrando em trabalho de parto na carceragem e, mesmo depois de o filho nascer, a Justiça paulista manteve a prisão provisória dela. Alguns dias depois, a decisão foi revista e Jéssica, agora, responde ao processo em liberdade, como mostrou reportagem da Ponte.
Ampliando um pouco o recorte e avaliando a condição das visitas, o Infopen mostra que há 5 vezes mais unidades prisionais masculinas preparadas para receber parentes. A cientista social do ITTC Mariana Camara pondera que mulheres, de uma forma geral, recebem menos visitas do que homens, mas essa demanda menor não pode jamais justificar a falta de estrutura dos presídios. “É verdade que as mulheres encarceradas não recebem tantas visitas como os homens, que o papel de cuidadoras atribuído a elas é muito bem representado quando elas estão do lado de fora da prisão, mas que o contrário não acontece. É triste ver isso. Por outro lado, acho que a própria construção de um papel social da mulher como cuidadora não dá tanta atenção para a necessidade de garantia de direitos como à visita íntima das mulheres. Elas estão sempre como mães, tias, avós, esposas, mas nunca como mulheres que tem direito de receber visitas íntimas de quem bem entenderem”, explica.
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