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sábado, 23 de junho de 2018

Revolução sexual de Maio de 68 “nunca aconteceu”, dizem especialistas

Carta Capital
por Radio France Internationale — publicado 06/05/2018
Movimento foi marcado pelo conflito entre gerações no país: jovens não encontravam um lugar na sociedade
Wikipedia
maio 68
Senhor observa um dos célebres slogans de Maio de 68 na França: "Jouissez sans entraves", "Gozem sem impedimentos", diz a frase, que simbolizava o desejo de liberação dos estudantes
“Um clichê que se tornou nostálgico e mesmo conservador”. A frase, do antropólogo, sociólogo e especialista em sexualidade na França, Michel Bozon, desmistifica a “revolução sexual”, que supostamente teria eclodido junto com Maio de 68. Para ele, assim como para a historiadora Michelle Zancarini-Fournel, a liberação sexual nunca foi uma das pautas principais do movimento que completa 50 anos.
Apesar de slogans eficazes, como “Gozem sem impedimentos” (“Jouissez sans entraves”, no original em francês), a sociedade francesa da época era conservadora e tinha o casamento heterossexual formal como referência. A mudança veio, poderosa, mas nos anos pós-68, com os combates levados a cabo pelas feministas e pelos homossexuais na França.
Ambos os especialistas concordam que Maio de 68 foi, acima de tudo, um momento marcado pelo conflito entre gerações no país. Os jovens não encontravam seu lugar na sociedade onde chegavam e seu modo de vida havia se tornado muito diferente do de seus pais ou avós. “Isto encontrava eco especialmente no meio estudantil, num contexto em que a situação era difícil, haviam muito poucas universidades e poucas vagas disponíveis dentro delas. Foi depois de Maio de 68 que criamos faculdades para acolher toda essa geração do baby boom [pós-Segunda Guerra mundial] que era muito numerosa”, relata o sociólogo Michel Bozon, pesquisador do Instituto Nacional de Estudos Demográficos da França (Ined).
“[A liberação sexual] não foi nem uma reivindicação, nem uma expressão de Maio de 68”, afirma a historiadora Michelle Zancarini-Fournel, co-fundadora da revista online CLIO Genre Histoire. “Houve efetivamente um certo número de publicações, cursos e conferências sobre a questão da sexualidade, e, em particular, de tentativas de mudar o funcionamento dentro das residências universitárias, que os rapazes pudessem ter acesso ao dormitório das moças. Para que as meninas pudessem obter uma liberdade de movimento”, lembra a historiadora, recordando que as mulheres eram obrigadas a voltar para seus quartos antes das 23h.
 A transformação da sexualidade na França foi um fenômeno ao longo termo, “não foi da noite para o dia”, diz. “Houve discussões sobre o tema antes de 1968, mas não teve nada a ver com as reivindicações de Maio-Junho de 68”, pontua Zancarini-Fournel. “Primeiro, a sexualidade não era uma preocupação central do movimento de Maio de 68”, concorda Bozon. “Foi um movimento estudantil e operário”, afirma. “Dentro das fábricas, o imperativo dos sindicatos era instaurar uma democracia, sair do monarquismo instalado na hierarquia, reivindicar melhores salários”, lembra.
O especialista destaca as reivindicações surgidas a partir do forte conflito entre gerações e comenta o slogan “Jouissez sans entraves” (“Gozem sem impedimentos”), dos “anarquistassituacionistas [referência ao movimento de esquerda, herdeiro do marxismo e do surrealismo]” da faculdade de Nanterre.  “A frase descrevia bem o desejo por um estilo de vida mais intenso. ‘Não queremos repetir os passos da geração passada’. O erro, essencialmente anacrônico, é de ter interpretado este momento, 20, 30 anos depois, como parte de uma revolução sexual. Não era nada disso”, diz o pesquisador.
“Reduzimos essa época a alguns estudantes de Nanterre, mas não é verdade, foi um movimento social profundo, que mexeu com o conjunto do país, não somente Paris, houve a maior greve geral do século 20, sete mil trabalhadores, havia muitas outras preocupações além da sexual”, diz a historiadora Michelle Zancarini-Fournel. “Não se deve falar de revolução sexual, isso não aconteceu”, afirma.
Mudança começa antes de 1968, mas casamento continua “indispensável”
O comportamento sexual dos franceses já havia começado a mudar um pouco antes de Maio de 68. As mulheres já começavam a ter relações sexuais mais cedo, antes do casamento, mesmo sem ter livre acesso a métodos de contracepção. “Mas o casamento formal continuava a ser algo essencial, na Igreja e na prefeitura”, detalha Michel Bozon. “As feministas se preocupavam então com o acesso à contracepção. Ao contrário do Brasil, elas não se debruçaram sobre este tema na época, na França houve uma mobilização antes de 1968 que resultou na legalização dos métodos contraceptivos, que eram proibidos desde 1920”, aponta o especialista em sociologia da sexualidade.
Depois de 1968, foi necessário algum tempo para que a lei entrasse em prática e as mulheres começassem a utilizar a contracepção, considerada um marco na vida sexual dos franceses. “As feministas continuaram a lutar contra dois pontos: a lei que proibia o aborto, com grandes manifestações na França nos anos 1970. A lei foi finalmente mudada, autorizando o aborto, em 1975. Outro ponto foi, no fim da década de 1960, uma lei que muda a criminalização do estupro, a Lei contra o estupro, em 1980”, indica Bozon.
Se as feministas ousaram falar sobre o direito sobre seus corpos, na época poucos homens pareciam interessados na legalização do aborto ou nas questões relativas ao estupro. “No caso do combate pela contracepção era mais complexo, havia médicos envolvidos, essencialmente o movimento francês pelo planejamento familiar, havia homens comprometidos com essa causa. As mulheres lutavam por uma verdadeira autonomia feminina, não era a busca de uma liberação sexual, era bem diferente. Elas buscavam uma autonomia sobre seus corpos, queriam usufruir do direito de decidir se querem abortar ou se desejam consentir ou não com uma relação sexual”, explica o sociólogo.
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Cercados por policiais, estudantes protestam em Paris, em maio de 1968. Créditos: Arquivo AFP
 Minorias provocam a verdadeira (r)evolução pós-68
Segundo Bozon, tudo o que realmente muda a sociedade francesa em termos de sexualidade no pós-68 parece sair do contexto do casamento clássico heterossexual: a transformação sexual surge a partir do combate feminista e homossexual. “A aparição do PACs, um contrato mais leve do que o do casamento, também transforma as relações. O PACs não exige fidelidade entre os parceiros. Isso é simbolicamente importante. E se antes acreditávamos que ele seria destinado unicamente aos homossexuais, hoje em dia sabemos que os casais heterossexuais se passam na mesma proporção que gays. O declínio do casamento formal é uma das grandes transformações da vida sexual na França, diz o especialista.
Em maio de 1968, a França ainda acredita no casamento formal, tido como indissolúvel. Essa mentalidade foi brutalmente modificada durante um processo posterior relativamente longo, que duroucerca de 30 anos. “Em 1968, havia apenas 6% de crianças nascidas fora do casamento. Em 2015, contabilizamos 60%. Isso mostra o fim da ligação simbólica entre casamento formal e fecundidade”, indica Bozon.
#Metoo, assédio e a consciência das violências sexuais
O sociólogo explica que a lei de criminalização do estupro, aprovada na França em 1980, foi pioneira, mas não foi uma “unanimidade na esquerda e na esquerda radical”. “No momento em que foi votada, as mulheres pensavam que o estupro era algo que pudesse ser cometido por um desconhecido na rua, esta imagem tradicional. Elas não imaginavam a amplitude disso que podemos chamar de violência sexual. Na verdade, foi a partir dos anos 2000, na virada do milênio, que nós vimos uma verdadeira mobilização, por parte da sociedade civil e do Estado francês, por políticas que combatessem essa violência”, diz.
Mas o processo foi lento. Em choque, a França descobre primeiro as violências sexuais sofridas na infância, nos anos 1990. Depois veio a violência conjugal, “que também era uma coisa impensável em Maio de 68”. “Foi disponibilizando linhas telefônicas que forneciam informações para as mulheres que haviam sofrido violência sexual que as feministas descobriram, por exemplo, que o estupro infantil era uma coisa extremamente importante e presente. Apenas em 2000 é que decidimos fazer uma grande pesquisa com mulheres para criar uma política contra as violências sexuais. Mesmo com a lei contra o estupro, de 1980, ainda não havíamos tomado consciência de questões como o assédio sexual”, pontua Bozon.  


A Aids, “elemento revolucionário” e o combate dos homossexuais
O sociólogo relembra que 1968 e a década de 1970 foram anos “muito homofóbicos” na França. A maioria da população francesa tinha então uma postura muito hostil aos homossexuais. Segundo ele, o “elemento revolucionário”, que mudou tudo, paradoxalmente foi o aparecimento da Aids.
Apareceram movimentos para lutar contra a discriminação criada pela Aids, e contra a doença, nos quais os homossexuais foram figuras extremamente importantes, como Act Up e Aides. A partir dos anos 1980, começa uma grande campanha de prevenção da Aids, conduzida pelas autoridades francesas, de maneira muito inclusiva em relação aos homossexuais”, relata Bozon.
A campanha provoca uma mudança significativa na população, “contrariamente a tudo que poderíamos imaginar na época”, diz o especialista. “Muita gente achava que a campanha poderia reforçar atitudes intolerantes, mas foi o contrário. Isso reforçou a aceitação homossexual, e abriu caminho para que novas reivindicações vissem a luz do dia, como o PACs, em 1999, que permitiu a união civil entre pessoas do mesmo sexo, e o casamento gay, em 2013. No meio, a lei que criminaliza a discriminação contra homossexuais, em 2004. Nada disso tem a ver com 1968”, diz o sociólogo.
Apesar de desmistificarem a ideia de uma “revolução sexual” em Maio de 68, os especialistas concordam sobre os efeitos de algumas questões levantadas durante o movimento social. “Os ecos dessas questões levantadas no pós-1968 são visíveis hoje, em grandes fenômenos de sociedade, como o nascimento de crianças fora do contexto do casamento tradicional, a explosão do número de separações, de divórcios”, contextualiza Michelle Zancarini-Fournel.

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