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segunda-feira, 11 de junho de 2018

Por que o convite para Fabiana Cozza interpretar Dona Ivone incomoda?

por Carol Castro — publicado 06/06/2018
Após fervor nas redes sociais a cantora e atriz renunciou ao papel da sambista. A polêmica envolve a falta de visibilidade dada aos negros retintos
Montagem/Reprodução/Divulgação
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Fabiana Cozza e D. Ivone eram amigas: atriz ia ao Rio de Janeiro comemorar os aniversários da sambista
Dona Ivone Lara subiu ao palco do Teatro de Arena do Centro Cultural da Juventude sentada em uma cadeira de rodas. Era agosto de 2011 e, aos 89 anos, ela tentava se levantar para cantar Alguém me avisou. À direita dela, em pé, a atriz e cantora Fabiana Cozza, convidada pela sambista naquela noite, se aproximou de Dona Ivone e jogou os braços sobre os ombros dela para dar suporte à “Grande dama do samba”. Abraçadas, as duas terminaram a canção composta por Dona Ivone.   

Dois anos antes, as duas também haviam subido ao palco juntas para interpretar os sambas mais famosos de Dona Ivone – um repertório bem semelhante àquele apresentado no CCJ. Segundo depoimento de Fabiana ao canal do Centro Cultural, naquela época, as duas haviam se tornado tão amigas que ela até costumava ir ao Rio de Janeiro comemorar os aniversários de Dona Ivone.
Foi essa proximidade que fez Fabiana sofrer com a morte da sambista, no dia 17 de abril, após um quadro grave de insuficiência cardiorrespiratória. “Choro a sua partida, mas levo-a comigo no peito ardido, no corpo, e na voz onde quer que eu desembarque. Te amo, Dona Ivone Lara! Obrigada, muito obrigada por tanto”, escreveu Cozza em seu perfil no Facebook.
E foi essa mesma proximidade que a fez compartilhar, no último dia 30, com seu público a felicidade em receber a confirmação de sua próxima peça: “Vou interpretar Dona Ivone Lara no musical Dona Ivone Lara - um sorriso negro. Coração na boca, peito aberto...”.
Não demorou muito, porém, para que começassem a surgir comentários questionando a escolha dos produtores. Por um motivo: Fabiana tem a pele clara, filha de mãe branca e pai negro. Dona Ivone era negra retinta. No último domingo 3, Fabiana desistiu de interpretar o papel da amiga sambista.
“O racismo se agiganta quando transferimos a guerra para dentro do nosso terreiro. Renuncio após ouvir muitos gritos de alerta – não os ladridos raivosos”, escreveu. “Renuncio porque a cor da pele de Dona Ivone Lara precisa agora, ainda, ser a de outra artista, mais preta do que eu. (...) Renuncio porque quero que outras mulheres e homens de pele clara, feito eu, também tenham o direito de serem respeitados como negros”.
A polêmica
A questão toda é bem mais complexa do que parece. Resumir o papo à cor da pele das musicistas explica muito pouco sobre a questão. Em seu Facebook, a arquiteta e ativista negra Stephanie Ribeiro explicou:
“O debate é sobre pessoas que não são vistas como negras, dependendo do contexto (...) mesmo essas pessoas optando por assumir uma identidade negra, elas não deveriam simetrizar suas vivências com as de quem nunca foi considerado branco. (...) Entendo o apagamento da identidade como algo violento, mas ser considerado branco está longe de ser simétrico a ser tratado, visto, e menosprezado por ser considerado negro em toda e qualquer situação.”
Em outras palavras, negros com a pele mais branca e traços mais finos, como Fabiana e a própria Stephanie, sofrem menos preconceitos do que negros retintos. E, por isso, ganham mais oportunidades e visibilidade. Faz sentido: ou a atriz Taís Araújo não é a negra com maior destaque e espaço na grande mídia?  
“Ainda vivemos a perspectiva de representatividade que segue a lógica de Gilberto Freyre, da democracia racial. E os pardos são vistos como a reconciliação racial, como se fosse uma melhora”, explica a escritora Paloma Franca Amorim, formada em artes cênicas. “A branquitude define o que será destaque ou não. E usam nossos corpos mais claros para apagar os mais escuros. Esses mecanismos ainda fazem com que mulheres como eu e Fabiana tenham uma visibilidade que ainda não foi dada aos negros retintos”, conclui.
Aos contrários à escolha de Cozza, portanto, o justo seria escolher uma atriz com a pele tão retinta quanto a de Dona Ivone. Afinal, se negros de pele escura enfrentam mais dificuldades, nada mais lógico do que, pelo menos, reservar a eles os papéis de negros retintos.
E é aqui que mora a polêmica – e onde vivem as diferenças de pensamentos entre os movimentos negros. Nem todo mundo concorda totalmente com esse pensamento. “Apesar disso, ter a pele mais clara não estabelece que a gente usufrua de privilégios. Interpreto e julgo as críticas como um erro”, diz Amorim. “Foi uma decisão [renunciar ao papel] dolorosa, mas justa pelo sentido histórico – por todo o debate atual sobre representatividade.”  
“A meu ver, ela tem legitimidade para representar a dona Ivone Lara, por uma série de questões: ela representa a negritude, é uma grande sambista negra; pela sua tradição, pela marca das religiões e matrizes africanas, pela proximidade de Dona Ivone”, defende Rosane Borges, jornalista, professora universitária e integrante da Cojira-SP (Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial).
“Ao emprestar sua voz, ela não mimetizará Dona Ivone. Mas o que se espera para que Dona Ivone seja dignificada é um corpo que seja capaz de transmitir sua soberania, o que ela era como diva. E tenho certeza que esse corpo [o de Fabiana] pode fazer isso”, conclui.
Isso não quer dizer, claro, que atrizes brancas seriam bem-vindas no papel de Dona Ivone. “Uma mulher branca seria um problema. Mas uma negra com pele mais clara não”, afirma Borges.
“A gente não desconsidera que a luta precisa dar mais visibilidade aos menos visibilizados. Quanto mais a pele escura, como a minha, mais a pessoa sofre com racismo e invisibilidade”, continua. “Por outro lado, estamos falando de traços que reafirmam a negritude. E não tenho dúvidas de que Fabiana reafirma a negritude de tal modo que pode representar uma mulher de pele escura.”
Só não há divergência no sonho de não precisarem mais brigar por espaço e visibilidade. Que mulheres negras possam também representar papéis comuns a mulheres brancas – e que tenham tantas oportunidades quanto elas. Que possam interpretar qualquer personagem. E que todas tenham as mesmas oportunidades – seja lá qual for a quantidade de melanina na pele, ou as características do cabelo, nariz e boca.

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