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sábado, 16 de junho de 2018

Filhas do Terror: filhas de genocidas repudiam seus pais na Argentina

Andrés del Río
Professor Doutor de Ciência Política na Universidade Federal Fluminense Quinta-feira, 14 de junho de 2018

Era 1977 ou 1978, quando a gente estava no jardim de infância, tanto eu como minha irmã celebrávamos os nossos aniversários em Campo de Maio. Se o dia estava lindo, o costume era: passava a procurar a gente um ônibus verde, daqueles grandes da Mercedes Benz, onde meus companheiros, quase toda a turma, subiam para passar o dia todo naquele lugar. A gente andava de helicóptero, jogava tênis, e nadávamos numa piscina quando o tempo permitia, em geral em abril. Isso acontecia durante o jardim de infância e também na escola primária até que um dia, eu acho que era 1983, meu melhor amigo da escola, Juan,me disse que aquele ano não ia.

Eu não vou poder comemorar seu aniversário“, disse ele. “Porque onde você celebra, eles matam pessoas”.
A história e relato são de Florência Lance, filha do aviador do Exército processado pelos “vôos de morte” em Campo de Maio. O que eram os voos da morte: os detentos-desaparecidos que estavam na Escola Mecânica da Armada (ESMA) e em outros centros de detenção clandestinos eram drogados, amarrados e jogados vivos de aviões para o Rio de la Plata e o Oceano Atlântico.  A história de Florência não é a única.
Na sua casa de Avellaneda, nos subúrbios de Buenos Aires, Mariana encontrava seu pai somente nos finais de semana. De segunda a sexta, seu pai conduzia o aparelho repressivo da cidade de La Plata e arredores. Ele ordenava sequestrar pessoas, torturá-las, assassiná-las. Os sábados e domingos o Etchecolatz quase não falava. Passava o tempo deitado na cama, assistindo televisão. Cada tanto assoviava: rapidamente deviam levar um copo de água com gás. Se alguma coisa não gostava, Etchecolatz dava uns tapas com a mão aberta nos seus filhos.
A história e relato são da Mariana, hoje com seu sobrenome trocado legalmente, Mariana Dopazo.
Desde a publicação na Revista Anfíbia do relato da Mariana Dopazo,o tema das filhas de genocidas teve uma visibilidade enorme. Do espaço íntimo ao público. Marca um novo momento da revisão do passado violento na Argentina, da justiça transicional nacional. E essa visibilidade se tornou massiva num momento fundamental na luta pela memória, verdade e justiça: a sentença da Corte Suprema Argentina, conhecida como a 2×1, favorecendo genocidas e torturadores.Porém, o novo rumo nas politicas de direitos humanos e da revisão do passado violento recente na Argentina pelo novo Governo de Mauricio Macri conheceu seu limite. A reação da sociedade foi imediata e contundente, lotando a Praça de Maio (e várias cidades do país) no dia 10 de maio de 2017. Nessa manifestação participava pela primeira vez, Mariana Dopazo.
O relato da Mariana mobilizou outras filhas de repressores a realizarem declarações, compartilharem confidências, histórias. Como o relato de Florência. Histórias silenciadas pelo medo, pela desonra, pela vergonha, pela vulnerabilidade que gera a opressão constante sobre a subjetividade.
Teria ao redor de uns dez anos quando recolhi um gato na rua. Caso vocês não saibam: os felinos não são os animais preferidos de um castrense. Entendi, tesoura de jardineiro mediante, que as sete vidas é pura mentira. O gato foi jogado no lixo numa bolsa preta. Esses métodos terminam por amedrontar qualquer subjetividade.
A narrativa é da Erika Lederer, filha de um dos obstetras da maternidade clandestina de Campo de Maio. Sua declaração se gestou a partir da leitura do relato da Mariana, na mesma Revista Anfíbia onde Erika terminaria contando sua própria história. Nessa revista várias mulheres descreveriam seus silêncios, sofrimentos, reconstruindo sua subjetividade amassada por anos de sombra e terror psicológico.
Assim se começou a ser criado o coletivo Historias Desobedientes, um grupo de filhas e filhos de militares e policiais que rejeitam seus pais por terem sido parte do terrorismo de Estado. É um coletivo ainda em processo, com diferenças, com contendas políticas, de nortes. Um debate recente que disputa espaços privados e públicos, intimidades, subjetividades, sombras. Cada um procurando qual é a melhor forma de luta, de expressão, criando outros coletivos e agrupações.
Mas apesar do coletivo e agrupações, a subjetividade é uma dimensão fundamental neste processo. Histórias intimas, que se tornam públicas, políticas, coletivizam-se e tornam-se parte da construção de memória da sociedade. “Ainda não está claro o que temos a dizer; o que está claro é que não queremos mais ficar calados, nós os repudiamos, não queremos ser seus filhos, não os deixamos ser nossos pais “, indica Florência Lance.
Diferente das organizações de direitos humanos, o processo é solitário, sua transformação em publico é parte de um processo subjetivo e que cada pessoa lida de sua forma, velocidade e sob sua própria perspectiva. Tratam-se de vínculos, de filiações, da intimidade, do privado, da subjetividade. Os mandatos familiares da obrigação de amar ao pai, a desconstrução, a liberdade da opressão. A desfiliação do terror. Do simbólico ao material. Mas todas elas formam um novo momento da construção da memória, recuperando os passados traumáticos. E eles têm um lugar de relevância nos debates políticos e culturais da sociedade.
Não existe uma memória única do passado, mas uma luta política do que aconteceu, e dos sentidos da memória. E a disputa e seus significados se multiplicaram com a chegada do Mauricio Macri ao poder. A sentença do 2×1 da Corte Suprema não foi aleatória, mas um sintoma do tempo presente. Neste novo contexto, outras agrupações lutam por sua visibilidade, como os filhos e familiares de repressores que reclamam irregularidades nos processos em andamento ou finalizados nos tribunais, como o coletivo Puentes para la legalidade, entre outros. Mas a potente reação à sentença do 2×1 sinaliza quanto está aceito e respaldado na Argentina o processo de justiça transicional, e os processos nos tribunais contra os repressores e genocidas.
Neste contexto se salienta que a grande maioria das vozes que saíram do privado para o público são de mulheres. Uma luta potente contra os pais, contra o patriarcado. E o movimento destas mulheres, principalmente, está em sintonia e fortalece os movimentos feministas. Da luta contra opressão, de colocar um limite, de reconfigurar os sentidos do afeto, do amor e suas formas. De politizar o íntimo como o movimento feminista também faz. Da construção dos novos caminhos.
Mariana Dopazo trocou seu sobrenome. Colocando um fim na desonra que o sobrenome do pai a oprimia. Não somente terminou com os sentidos determinados por esse sobrenome, mas também não permitiu mais que ele seja seu pai, de forma material. Agora é uma ex-filha, como ela indica. Uma luta pela reconstrução da subjetividade, da intimidade, do corpo. Do simbólico e do material. Assim, a própria Mariana destrói e ressignifica o que o próprio genocida Emilio Eduardo Masseradeclarou no Juicio a las Juntas quase 35 anos atrás: “Quando a crônica desvanecer porque a história se torna mais nítida, meus filhos e meus netos pronunciarão com orgulho o sobrenome que eu deixei.”
 Andrés del Río é Professor Doutor de Ciência Política na Universidade Federal Fluminense UFF.
Referências
CLINAMEN – HIJOS E HIJAS DE GENOCIDAS (PARTE I). Mar en Coche. Argentina. 2018. Disponível:https://bit.ly/2sNMS6k
CLINAMEN – HIJOS E HIJAS DE GENOCIDAS (PARTE II). Mar en Coche. Argentina. 2018. Disponível: https://bit.ly/2LIhH3g
DEL RIO, Andrés. (2017), A Corte Suprema e a falida sentença do 2×1.Jota, Brasil. 15/08/2017. Disponível: https://bit.ly/2l0RCkS
FLORENCIA LANCE. (2018), SOY HIJA DE UN AVIADOR DE LOS VUELOS DE LA MUERTE. El Cohete a la Luna.  MAR 25, 2018. Disponível:  https://bit.ly/2JHUlNV
LEDERER, Erika. (2017), HIJOS DE REPRESORES: DEL DOLOR A LA ACCIÓN. Identidad y vergüenza. Revista Anfibia. Disponível: https://bit.ly/2Gfeh9n
MANNARINO, Juan Manuel. (2017), MARCHÉ CONTRA MI PADRE GENOCIDA. Mariana, la hija de Etchecolatz. Revista Anfibia. Disponível: https://bit.ly/2qdsKYM
SCOCCO, Marianela. (2018), Historias desobedientes. ¿Un nuevo ciclo de memoria?.SUDAMÉRICA : Revista de Ciencias Sociales, Argentina.

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