20 DE JUNHO DE 2018
Pesquisa realizada com mais de 1.100 cientistas no país mostra que queda na produtividade e no acesso a financiamentos de pesquisa é comum para mulheres após se tornarem mães; Gênero e Número mergulhou no tema para entender quais seriam as alternativas rumo a uma ciência mais equânime entre homens e mulheres
Por Aline Gatto Boueri e Carolina de Assis*
A bióloga Fernanda Staniscuaski sempre soube que queria ser cientista. Pós-doutora em Ciências Biológicas, ela foi contratada em 2011 como professora adjunta do Departamento de Biologia Molecular e Biotecnologia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), aos 30 anos. Ela também sabia que queria ser mãe e, aos 32 anos, quando se sentiu em um momento estável na carreira, decidiu ter seu primeiro filho. O segundo chegou dois anos depois, em 2015, e ela hoje está grávida do terceiro.
Ao voltar à universidade após sua primeira licença-maternidade, Staniscuaski passou a se dividir entre o trabalho como docente e o cuidado da criança, compartilhado entre ela e o marido. A dedicação à ciência feita em laboratório ficou em segundo plano no primeiro ano do bebê, o que ficou evidente na queda de sua produtividade científica – aquela catalogada no currículo da plataforma Lattes, do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), na forma de publicações de artigos em revistas acadêmicas.
O impacto disso foi sendo sentido nos anos seguintes: entre 2014 e 2016, a bióloga viu serem recusados por comitês de seleção do CNPq e de outras iniciativas de fomento pelo menos seis pedidos de bolsa ou inscrições em editais de apoio à pesquisa. Mais de um parecer em resposta às tentativas de Staniscuaski de financiar suas pesquisas mencionaram o “bom potencial da proponente” e o fato de que a bióloga tinha condições de realizar o projeto proposto, mas afirmaram que sua produção científica estava “aquém do esperado” em comparação com seus pares no mesmo momento da carreira, o que seria digno de “preocupação”.
A queda na produtividade científica também foi pretexto para que ela fosse rebaixada de membro permanente a colaboradora no programa de pós-graduação em que leciona. Isso sob a justificativa de que o programa precisava manter sua nota máxima na avaliação da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior), que leva em conta a produtividade do corpo permanente.
“Eu tinha receio, mas não tinha noção da magnitude”, disse Staniscuaski a Gênero e Número sobre as consequências de sua decisão de dedicar menos tempo ao trabalho fora de casa para ter mais qualidade em sua vivência da maternidade. “Todas as decisões que tomei na vida, no âmbito pessoal ou profissional, foram no sentido de priorizar minha carreira. Quando me tornei mãe foi a primeira vez que o pessoal se sobrepôs ao profissional. Dediquei toda a minha vida adulta à ciência e no momento em que preciso de flexibilidade, continuo sendo cobrada. O sentimento é de que tentam me dizer ‘tu não serve mais pra gente’.”
Com filhos, na ciência
A bióloga compartilhou com amigas e colegas sua frustração, que foi ecoada por várias mulheres que são mães e se dedicam à ciência e à academia. Ao se dar conta de que esta era uma questão estrutural em sua área e ao não encontrar dados sobre o tema no Brasil, Staniscuaski fez o que uma cientista faria: criou um grupo de pesquisa para investigar o impacto da maternidade na carreira científica das mulheres.
O projeto Parent in Science (Pessoas com filhos na ciência, em tradução livre), liderado pela bióloga e composto por outros cinco cientistas – quatro mulheres e um homem -, realizou no segundo semestre de 2017 uma pesquisa, por meio de questionário online, que foi respondido por 1.182 docentes brasileiras. Os resultados preliminares foram apresentados no I Simpósio Brasileiro sobre Maternidade e Ciência, realizado em Porto Alegre no começo de maio com Staniscuaski como uma das organizadoras.
Entre as respondentes, 77% eram mães e 54% delas eram as únicas pessoas responsáveis pelo cuidado de seus filhos. A média de idade delas no momento da chegada do primeiro filho foi 32 anos – a média brasileira, segundo o Censo 2010 do IBGE, é 26,8 anos.
A pesquisa também analisou o ritmo de publicações científicas das respondentes com e sem filhos e constatou o impacto da maternidade neste aspecto da profissão. Enquanto as cientistas sem filhos têm uma curva ascendente em sua produção científica, as que se tornam mães têm uma queda drástica nas publicações até o quarto ano do nascimento do primeiro filho, para só depois disso começar a ascender novamente.
“Estamos falando de um impacto de quatro ou cinco anos no nível de produtividade”, avalia Staniscuaski. “Isso para aquelas que permanecem na carreira científica, porque estamos perdendo muita gente, como vemos quando fazemos a análise de participação da mulher na ciência. Conforme a carreira avança, o número de mulheres diminui, e não há dúvida de que a maternidade seja determinante, porque não há políticas de auxílio para diminuir esse problema.”
A grande maioria das respondentes da pesquisa do Parent in Science apontaram nesse sentido, com 81% afirmando que a maternidade teve um impacto negativo ou muito negativo em suas carreiras. Além do custo profissional da falta de apoio à maternidade, muitas delas relataram o impacto em sua saúde mental. Muitas docentes, pesquisadoras, escreveram falando de casos de depressão e problemas de saúde mental não só no puerpério, mas por dois ou três anos depois do parto.
Com modelo produtivista e competitivo, ciência se distancia de ideal de ‘construção do conhecimento’
A queda na produção de artigos científicos é uma das principais fontes de ansiedade para as cientistas que se tornam mães e passam a dedicar aos filhos parte do tempo que anteriormente dedicavam ao trabalho. Isso porque a valorização de um profissional na ciência, no Brasil e internacionalmente, por seus pares e por comitês de avaliação e seleção para financiamento à pesquisa, está muito atrelada a este placar das publicações em revistas científicas e livros acadêmicos.
“O sistema que se consolidou nos últimos 15 anos [na ciência] é super competitivo e produtivista, e encarna essa imagem da corrida”, analisa Daniela Manica, antropóloga e professora no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo Científico (Labjor), da Unicamp. “É uma corrida pela publicação antes dos outros, em revistas mais qualificadas, e nesse sentido a universidade segue muito a forma como o mercado privado de trabalho acontece.”
Tal processo está bem distante da lógica fundada na Europa com a Revolução Científica, a partir do século 16, e com o Iluminismo, no século 18, diz Manica, que tem se dedicado à Antropologia da Ciência. “Tem muito mais a ver com uma tecnociência, uma ciência voltada para a produção de tecnologia e inovação e para a produção do currículo dos pesquisadores, do que com o ideal iluminista de construção do conhecimento, de questionar sobre o mundo. E é isso que leva as pessoas a serem cientistas: a curiosidade sobre o mundo, a vontade de descobrir e trabalhar para conhecer.”
Outro aspecto particular à carreira científica é sua internacionalidade. “A descoberta científica é por natureza internacional e precisa ser conhecida internacionalmente”, disse Marcia Barbosa, professora titular do Instituto de Física da UFRGS e membro da diretoria da Academia Brasileira de Ciências, premiada internacionalmente por seu trabalho pela maior inclusão das mulheres na ciência.
“Uma parte importante da carreira é estar fisicamente presente no cenário internacional, o que implica viajar. Isto é particularmente complicado para uma pessoa que tenha que cuidar de crianças ou de idosos”, observa a física, acrescentando que na nossa sociedade esse papel é tradicionalmente relegado às mulheres.
Esse aspecto foi notado no relatório “Gender in the Global Research Landscape” (“Gênero no panorama de pesquisas global”, em tradução livre), lançado em 2017 pela editora de publicações científicas Elsevier. Uma das conclusões do documento, que analisou dados de 12 países, entre os quais o Brasil, é que as pesquisadoras tendem a colaborar menos internacionalmente em artigos científicos e ser menos “internacionalmente móveis” do que os pesquisadores.
“Quando eu contei que estava grávida, a reação da coordenadora do meu programa foi péssima. Me disse que seria muito difícil eu fazer o doutorado com uma criança pequena.”
“No início [do retorno ao trabalho], tive muita dificuldade para me concentrar nas leituras. Eu amamentava e o cansaço me roubava atenção. Também tive muita dificuldade para participar de atividades extras, grupos de pesquisa ou palestras que acontecem na universidade. Participar de congressos também foi difícil nos dois primeiros anos. Não me dediquei a escrever artigos ou fazer pesquisa, por falta de tempo.”
A alta competitividade e a exigência de produtividade se combinam com a especificidade da produção do conhecimento científico, que não se restringe à carga horária cumprida no laboratório ou na universidade. Aí podem ser incluídas desde a leitura de material de apoio à própria pesquisa e a escrita de artigos, relatórios e livros até tarefas supostamente mais simples, como responder emails. “Não é um trabalho em que você vai bater cartão, chegar às 9h e sair às 17h e acabou, no fim de semana você não pensa naquilo”, diz a antropóloga. “O cientista está pensando no seu tema de pesquisa o tempo todo. Não tem uma separação do tempo.”
Esse aspecto do trabalho científico afeta particularmente as profissionais que são mães e têm pouco ou nenhum apoio no cuidado dos filhos. Entre as respondentes do Parent in Science, 45% disseram que não têm disponibilidade para realizar trabalhos ligados à ciência em casa ou o fazem muito raramente ou com muita dificuldade, e 21% disseram que o fazem após os filhos dormirem ou de madrugada.
Segundo o relatório, “se as mulheres se movem menos internacionalmente, isso pode restringir sua rede e suas oportunidades de colaboração internacional. Se a colaboração internacional ocorre com menos frequência para mulheres do que para homens, as redes delas podem permanecer pequenas e isso pode afetar negativamente suas oportunidades de progressão e mobilidade na carreira.”
Mulheres são maioria na base, mas homens dominam topo da ciência no Brasil
No Brasil, os dados sobre a presença de mulheres na graduação, na pós-graduação, na docência, em grupos de pesquisa e nas bolsas do CNPq evidenciam as diferenças na progressão da carreira científica de homens e mulheres. Elas são maioria em todos os níveis de ensino e em quase todas as modalidades de bolsa, compondo a base da pirâmide da academia e da ciência produzida no país. No topo, porém, dominam os homens.
As mulheres são 57% do total de pessoas matriculadas na graduação no Brasil, segundo o Censo da Educação Superior mais recente, de 2016, e 55% do total de mestrandos e 53% do total de doutorandos, de acordo com os últimos dados disponíveis na base Sucupira, da CAPES, também referentes a 2016. Nos últimos cinco anos, elas também foram maioria nas bolsas do CNPq de iniciação científica (55%), mestrado (52%) e pós-doutorado (53%), e empataram com os homens nas bolsas de doutorado (50%). Em 2016 elas eram um pouco mais da metade do total de membros de grupos de pesquisa (51%), segundo o CNPq.
Essas cifras se invertem na docência no ensino superior – que pressupõe a institucionalização como professor e pesquisador -, na liderança de grupos de pesquisa e nas bolsas de Produtividade em Pesquisa (PQ), a mais alta categoria de apoio do CNPq a pesquisadores no país.
Os homens superam as mulheres nas duas primeiras, como 54% dos docentes em universidades e centros de ensino superior no Brasil e 53% dos líderes de grupos de pesquisa, e as deixam para trás com folga na segunda, como 64% dos recipientes de bolsas PQ nos últimos cinco anos. Essa diferença aumenta à medida que se avança aos níveis mais altos dessa categoria: eles chegam a 75% dos agraciados com a bolsa nos níveis 1A e Sênior.
Além de ser minoria no topo, elas chegam lá mais tarde do que eles: em 2018, a faixa etária com maior presença de mulheres nas bolsas PQ é a que vai dos 55 aos 59 anos, enquanto a maior presença de homens é na faixa etária de 50 a 54 anos. Essa tendência tem se acentuado nos últimos cinco anos, com a presença de pesquisadores cada vez mais jovens nessa categoria de bolsas em comparação com o começo dos anos 2000. Na liderança de grupos de pesquisa, a paridade entre mulheres e homens acontece na faixa etária de 45 a 54 anos. Eles são maioria entre líderes desde a primeira faixa, antes dos 24 anos, e voltam a ser maioria a partir dos 55 anos.
Para as pesquisadoras ouvidas pela Gênero e Número, essa assimetria nos postos mais altos da academia e da ciência brasileiras está relacionada aos condicionamentos ligados ao gênero, que impõem expectativas e cobranças diversas a mulheres e homens. Entre estas estão as noções de que, no caso de casais heterossexuais, são as mulheres as responsáveis primárias pelo cuidado de filhos, idosos e enfermos e são as carreiras delas as que devem ser sacrificadas em prol da coesão familiar.
“Achar dois empregos competitivos, marido e mulher, no mesmo local, é bem difícil”, disse Barbosa. “No meio acadêmico em particular, os locais de emprego, as universidades, são localizadas em cidades específicas. Assim, muitas desistem. Além disso, muitas que permanecem na carreira ‘optam’ por desistir da maratona [da pesquisa científica] e ficam com atividades de aula e de administração.”
A física também vê esse sistema se retroalimentando. “Como a maioria das lideranças são homens, eles indicam homens para posições, prêmios, etc. Em vários comitês dos quais participei, ao aparecer um casal idêntico academicamente, todos queriam dar a posição para o homem. Cheguei a ouvir: ‘como ele iria se sentir sabendo que perdeu a posição para uma mulher?’”
“Tive bastante problemas com os homens do meu laboratório, principalmente com os de funções equivalentes. A competição era exagerada, enfrentei deboches e, de certa forma, assédio moral. Desde a gravidez isso foi constante.”
“Um dia, quando estava grávida, faltei porque tive um sangramento. Um colega postou uma notícia no grupo do laboratório de que ‘gravidez não é doença’, falando de mulheres que continuam normalmente suas atividades durante a gestação.”
“Ainda grávida, tentei vaga na creche da Fiocruz, mas havia uma lista de espera imensa e eu como bolsista não tinha prioridade alguma. Tentei trabalhar como dava nos últimos seis meses de bolsa, com bebê, e resolvi abandonar a carreira.”
— B. C., foi bolsista de pós-doutorado em Biologia na Fiocruz e abandonou a carreira científica depois do nascimento do filho, em 2014.
Betina Stefanello Lima, analista de ciência e tecnologia do CNPq, tem se dedicado a esse tema há pelo menos 15 anos e afirma que não se trata apenas de um teto de vidro, uma única e grande barreira para a ascensão das mulheres na carreira científica. Ela propõe a existência de um “labirinto de cristal”, consistindo em diversos obstáculos que tornam a trajetória das mulheres “mais tortuosa, impactando nas posições que alcançam ou não e no ritmo de chegada”.
Segundo Lima, outra particularidade da carreira científica é a centralidade da lógica do mérito como único determinante no desempenho e na progressão profissional. “O discurso meritocrático dificulta a discussão sobre os marcadores sociais (gênero, raça, etnia, classe) na carreira científica”, afirma. “O que não quer dizer que o mérito não deva ser valorizado, porém de forma contextual, ou seja, considerando as especificidades e desigualdades do sistema.”
Questionado pela Gênero e Número sobre a disparidade na presença de mulheres e de homens em diferentes níveis de bolsas, o CNPq afirmou que “tem estudado e proposto medidas no sentido de tornar os comitês e as comissões mais paritários, com a presença mais significativa das mulheres na tomada de decisão sobre a distribuição de recursos e bolsas” e reconheceu que “é necessário melhorar ainda mais nossos critérios de avaliação”.
‘Não é afeto, é trabalho’: cuidado de filhos e da casa sobrecarrega mulheres também na ciência
As dificuldades que as mulheres que se tornam mães enfrentam para manter sua competitividade na carreira científica não podem ser totalmente compreendidas sem deter o olhar sobre a divisão sexual do trabalho doméstico não remunerado ou do trabalho de cuidado. A distribuição dessas tarefas ainda é desigual e sobrecarrega as mulheres, independentemente de suas escolhas profissionais.
Segundo dados de 2017 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), no total da população pesquisada – a partir de 14 anos, ou seja, em idade de trabalhar – as mulheres dedicam uma média de 21 horas semanais ao cuidado de pessoas e aos afazeres domésticos, enquanto os homens disponibilizam metade desse tempo para as mesmas tarefas.
“Isso que é lido como afeto – claro que é afeto também – é importante conceituar como trabalho”, aponta Moema de Castro Guedes, cientista social da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e pesquisadora sobre desigualdades de gênero entre bolsistas do CNPq. “Esse trabalho tira tempo das mulheres e tira a competitividade delas quando estão disputando postos, seja no mercado de trabalho ou na ciência.”
“Eu tinha acabado de assumir o cargo de professora e pesquisadora na UnB. E três meses depois eu descobri que eu estava grávida. Foi um misto de alegria e desespero. A principal reação foi minha mesmo, porque fiquei com muita vergonha e medo do que as pessoas iam achar em relação ao fato de eu ter assumido há pouquíssimo tempo e estar grávida, o que significava que eu ia estar de licença em um futuro próximo.”
“Não há acolhimento, apoio, conversas estruturadas em nível institucional. A UnB não tem creche para professores, não tem colégio de aplicação. E quando as mães acadêmicas voltam não há um acompanhamento da instituição. E eu estou falando de um lugar de privilégio, porque ainda existem as mulheres mães estudantes que não têm nada. Não há política pública voltada pra isso.”
— Haydée Caruso, antropóloga e professora adjunta da Universidade de Brasília (UnB). Sua filha nasceu em 2011.
A concentração do cuidado dos filhos sobre as mulheres também se dá à força de lei no Brasil, com a disparidade nos períodos de licença-paternidade e maternidade pressupondo e perpetuando a não participação dos homens nesse trabalho.
Enquanto a licença-maternidade garantida pela Constituição para as trabalhadoras com carteira assinada é de 120 dias, o benefício para os pais é de cinco dias. Em 2016, o Marco Legal da Primeira Infância (lei nº 13.257/2016) estabeleceu a prorrogação da licença-maternidade por 60 dias e por 15 dias para a licença-paternidade para funcionárias e funcionários de companhias participantes do Programa Empresa Cidadã, que podem deduzir integralmente o valor total da remuneração paga nos dias extras de licença.
Para as cientistas com bolsas de apoio à pesquisa, desde dezembro de 2017 a lei nº 13.536 prorroga em até 120 dias bolsas de pelo menos um ano concedidas por agências de fomento em caso de parto, adoção ou obtenção de guarda judicial para fins de adoção. Uma portaria da CAPES de 2011 já previa o mesmo benefício para bolsas de mestrado e doutorado iguais ou superiores a 24 meses, e em 2015 o CNPq estabeleceu um regime de prorrogação de bolsas em virtude de parto ou adoção.
No entanto, nem a CAPES nem o CNPq têm políticas de extensão de bolsas para os cientistas que se tornam pais. Daniela Manica observa que aqueles que escolhem se envolver no cuidado dos próprios filhos, portanto, acabam passando por dificuldades similares àquelas enfrentadas pelas cientistas que se tornam mães e também são penalizados pela lógica de produtividade a qualquer custo instalada nas ciências e nas universidades brasileiras.
“O problema é ter como parâmetro de trabalhador uma pessoa que não tem vida própria, que vive para o trabalho”, diz a antropóloga. “Em uma atmosfera como a de hoje, super competitiva e restrita em oportunidades, acabam sendo premiadas as pessoas que abdicam de sua vida pessoal e familiar e destinam toda sua energia e sua libido para o trabalho.”
Maternidade no Lattes, editais específicos e creches são caminhos possíveis para apoio a cientistas que são mães
Fernanda Staniscuaski, do Parent in Science, observa que a licença-maternidade sozinha não é suficiente como política de incentivo para cientistas que se tornam mães. “É um direito adquirido, mas seguem as mesmas pressões. A licença em si às vezes até gera mais cobrança na hora do retorno às atividades. E aos quatro meses os filhos demandam os mesmos cuidados, a mesma dedicação.”
Para dar visibilidade às consequências da chegada de uma criança na carreira científica de mulheres, a bióloga estimula o movimento Maternidade no Lattes, que incentiva a descrever no campo da minibiografia o tempo dedicado ao cuidado dos filhos como parte dos trabalhos realizados pela cientista. O efeito dessa visibilização ainda não está quantificado porque a plataforma brasileira de busca de currículos acadêmicos não dispõe de uma ferramenta específica para a inclusão dessa informação.
“Vimos no projeto – e sabíamos pela experiência pessoal – que depois da maternidade as mães ficam com buraco no currículo e em nenhum momento se cogita a razão desse buraco”, disse Staniscuaski. “Em processos de avaliação, de grant, de editais, essa cientista sai prejudicada. É preciso considerar que esse buraco existe por um motivo que é constante na vida das cientistas: a grande maioria tem filhos, vai passar por isso e isso precisa ser reconhecido de alguma maneira.”
À Gênero e Número, o CNPq disse estar “aberto ao diálogo com a comunidade científica para implementar as melhores medidas e ações que promovam a equidade de gênero”, entre elas a inclusão de informações sobre filhos e licença-maternidade no currículo Lattes. “Há uma comissão Lattes onde esse assunto poderá ser encaminhado”, disse a instituição, não se comprometendo, porém, a fazê-lo.
Staniscuaski afirma que o movimento cresce entre pesquisadoras nos espaços de discussão sobre ciência, mas reclama que chegue também aos espaços onde se tomam decisões. “Nos cargos de chefia, de liderança, de tomada de decisão, a maioria é masculina, mas são as mulheres que concentram o cuidado com os filhos”, avalia. “Também acontece que as decisões são tomadas por pessoas com a carreira mais avançada, que quando passaram por isso, passaram há muitos anos. Quem está a frente, criando regras, ou não passou por essa experiência ou passou há muito tempo e esqueceu.”
Para a correção de fatores de desigualdade na escalada da carreira de mulheres cientistas que se tornam mães, a bióloga recomenda – como medidas urgentes e mais simples de serem implementadas – que os critérios de avaliação passem a levar em consideração a diminuição da produtividade a partir da chegada de uma criança.
“Uma das coisas que queríamos com o projeto é estabelecer esse tempo, esse buraco que existe para retomada. Pelo que vimos, esse período vai de um a quatro anos – falando de um filho somente”, aponta. “Os processos seletivos consideram os últimos cinco anos da produção, mas uma cientista que foi mãe deveria ter analisado os últimos sete ou oito anos.”
No Brasil, o Instituto Serrapilheira lançou uma chamada pública em junho de 2017 para financiar jovens pesquisadoras e pesquisadores independentes nos campos da ciência da computação, ciências da terra, ciências da vida, engenharias, física, matemática e química. O edital estipulava que os candidatos deveriam ter recebido o grau de doutor depois de 1° de janeiro de 2007, mas incluía um fator de correção para mães: no caso de um filho, o prazo passava a ser 1° de janeiro de 2006, em caso de dois ou mais filhos, 1° de janeiro de 2005.
Na Argentina, o Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet), prorroga em um ano o limite de idade das candidatas a bolsas de pós-graduação por cada filho. Essa extensão pode chegar a até três anos para quem tiver três filhos ou mais.
O Parent in Science aponta a iniciativa australiana Women’s Academic Fund, do governo do Estado de Queensland, como uma referência de boas práticas em incentivo a mulheres cientistas que se tornam mães. Em fase de avaliação, a linha de financiamento destina recursos para a contratação de assistentes de pesquisa em casos de licença-maternidade e para despesas relacionadas aos filhos em casos em que a cientista que é mãe precise se deslocar para participar de atividades científicas dentro ou fora do país.
“O ideal seria que o Brasil adotasse políticas exclusivas de financiamento para cientistas mães”, afirma Staniscuaski. No entanto, ela reconhece que o atual cenário de cortes no financiamento da ciência brasileira dificulta a adoção de medidas dessa natureza. “Mal temos editais de pesquisas tradicionais acontecendo, quem dirá um com foco específico nas mães.”
Em setembro de 2017, a Gênero e Número trouxe dados de como a redução do orçamento dedicado à ciência brasileira prejudica especialmente as mulheres. Entre 2014 e 2016, pesquisadores homens passaram de receber R$ 409 milhões em verbas para R$ 1,6 milhão. Para as mulheres, os recursos destinados passaram de R$ 192,2 milhões em 2014 para R$ 428 mil em 2016.
Crianças na ciência
Outra medida que a bióloga considera importante é a inclusão das crianças nos eventos científicos, com espaços de recreação ou de cuidado compartilhado para que as mulheres tenham a possibilidade de participar sem a necessidade de se afastar de seus filhos. “É comum que mães não participem de eventos científicos longe de casa. Uma possível solução, já adotada em outros países, é a criação de editais para financiamento de despesas relacionadas ao cuidado da criança, que incluam passagem aérea para a criança viajar junto ou para um acompanhante que cuide da criança”, pontua.
Ela também sugere a criação de guias de boas práticas para bancas de concurso. “Que se deixe bem claro que não é admissível questionar se a mulher vai ter filho ou não, porque esse questionamento vai ter um impacto na entrada das mulheres no sistema. Não podemos permitir que isso continue sendo uma questão.”
As pesquisadoras ouvidas pela Gênero e Número também destacaram como basilar o estabelecimento de creches próximas ou no próprio local de trabalho das e dos cientistas – nos campus das universidades, por exemplo.
“O ideal, em um mundo mais inclusivo, seria que essa questão não fosse vista como pertinente à mãe, mas como uma questão institucional”, diz Manica. “As instituições têm que ter creches com capacidade de absorver os filhos da comunidade acadêmica como um todo. Não é só resolver a questão das mulheres, mas pensar em uma humanidade na qual estejam incluídas todas essas pessoas que não estão contempladas nessa figura do ser humano ‘homem’”.
“No dia em que eu fui para a maternidade eu estava submetendo um artigo, e depois de um tempo eu estava respondendo os revisores desse artigo.”
“Nem consigo imaginar como seria voltar ao trabalho sem a creche [da Fiocruz]. Eu confio muito na creche, eu deixo meu filho lá e volto a ser eu mesma. Isso, junto com o apoio do meu marido, que é cientista também, ajudou para que eu não tenha tido um intervalo na minha carreira.”
— Veronica Schmitz Pereira, pós-doutorado no Laboratório de Imunologia Molecular do Instituto Carlos Chagas Filho/UFRJ e no laboratório de Hanseníase da Fiocruz. Seu filho nasceu em 2013.
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), instituição centenária localizada no Rio de Janeiro e referência em saúde pública no Brasil, é um dos lugares onde o serviço de creche é oferecido não só a seu quadro de cientistas, mas a todos os seus servidores – 56% dos quais são mulheres, segundo estudo da pesquisadora Jeorgina Gentil Rodrigues, servidora aposentada da Fiocruz.
A creche no campus Manguinhos, na zona norte do Rio, funciona desde 1989 e atende hoje 289 crianças de cinco meses a cinco anos. Em 1990, o Instituto Fernandes Figueira (IFF), parte da Fiocruz e localizado no Flamengo, zona sul da cidade, também passou a contar com uma creche, que hoje atende 57 crianças na mesma faixa etária. A instituição permite que mães tenham a possibilidade conciliar o retorno ao trabalho com o período de adaptação da criança à creche e o aleitamento materno.
As instituições precisam agir para manter os “preciosos cérebros” das mulheres na carreira científica, diz Marcia Barbosa, não só por uma questão de justiça social e igualdade de oportunidades, mas porque a diversidade de experiências enriquece a ciência. “A ausência de diversidade leva a não pensar no amplo espectro dos problemas. Grupos heterogêneos são capazes de realizar melhor as tarefas. Diversidade leva a uma ciência melhor”, afirma a física.
*Aline Gatto Boueri é colaboradora e Carolina de Assis é editora da Gênero e Número.
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