O tema, como se sabe, é candente e a discussão jurídica nesse campo acaba quase sempre sendo capturada por argumentos de fundo moral ou religioso
ANDERSON SCHREIBER*
14/06/2018
A ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber (Foto: José Cruz/Agência Brasil) |
Em gesto corajoso, a Ministra Rosa Weber convocou audiência pública para tratar do tema do aborto, debatido na ADPF 442, em que se pede ao STF que afaste a aplicação do Código Penal no caso de interrupção voluntária da gravidez até a 12a semana. A audiência promete ser histórica. Diversos especialistas participarão das discussões, alguns a favor e outros contrários ao aborto. O tema, como se sabe, é candente e a discussão jurídica nesse campo acaba quase sempre sendo capturada por argumentos de fundo moral ou religioso. O papel do STF, no entanto, não será dizer se o aborto é certo ou errado, em termos de fé, filosofia ou moralidade, mas sim dizer se a mulher que sofre uma gravidez indesejada tem ou não o ‘direito’ de interrompê-la.
Pesquisa realizada pela UnB e pelo Instituto ANIS revelou que, no Brasil, uma em cada cinco mulheres de 40 anos já realizou, ao menos, um aborto ao longo da vida. Como se vê, independentemente do que diga a lei, as mulheres já abortam. O que a criminalização faz é lançar o procedimento na marginalidade, privando-o de fiscalização e inibindo a busca de tratamento para moléstias que a prática clandestina pode provocar. Estudos de campo revelam que complicações pós-aborto são numerosas em nosso país. Diariamente, jovens sem recursos econômicos realizam abortos sob condições insalubres em clínicas ilegais ou ingerem medicamentos como o misoprostol – que, proibido no Brasil, acaba sendo contrabandeado de países que legalizaram o aborto, como Argentina e Uruguai, com os ônus típicos do contrabando (procedência duvidosa, imunidade ao controle sanitário etc.). Por vezes, as pacientes empregam métodos mais medonhos, como uso de cabides e agulhas de tricô. Por medo da sanção penal, tentam ocultar de familiares e vizinhos os sintomas de que começam a padecer após o procedimento abortivo, retardando o ingresso no hospital e agravando seu estado patológico. Quando, enfim, se submetem ao atendimento médico, deixam de revelar o aborto aos médicos, dificultando diagnóstico, tratamento e recuperação. Assim, a criminalização do aborto acaba gerando, em alguns casos, exatamente o efeito que os defensores do tratamento penal acreditam estar evitando: a morte.
É preciso notar que a interminável discussão moral em torno do aborto afigura-se menor diante do problema concreto de saúde pública que a criminalização produz. A “questão do aborto” não pode mais ser encarada desse modo: como uma “questão”, ou seja, uma indagação de ordem filosófica em torno da qual nunca se chegará a um consenso. Discutir nesse plano é como tentar obter um acordo entre religião e ciência. A preservação da proibição penal radica forte em preconceitos históricos e religiosos que atribuíam ao corpo da mulher um certo destino social, ligado à procriação, de modo alheio à sua vontade, como se o corpo fosse um fardo, e não um instrumento de realização pessoal como quer a ordem constitucional vigente. O critério há de ser jurídico.
O STF parece atento a tudo isso, pois tem ampliado as “exceções” à criminalização: primeiro, permitindo o aborto dos fetos anencefálicos (ADPF 54) e, depois, deixando, por decisão da 1ª Turma, de considerar crime o aborto realizado até o terceiro mês de gestação – matéria que, agora, terá de ser decidida pelo Plenário. Espera-se da Corte que prossiga nessa marcha libertária, valorizando a maternidade como ato de escolha e reconhecendo que não há razão jurídica para que o Estado interfira na autonomia corporal da mulher, impondo-lhe uma gravidez involuntária que, sem prejuízo dos discursos de fé, soa mais como pena que como dádiva.
* Professor Titular de Direito Civil da UERJ e sócio do escritório Schreiber Domingues Cintra Lins e Silva - Advogados
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