Katia Rubio é professora associada da Escola de Educação Física e Esporte da USP e membro da Academia Olímpica Brasileira
11/06/2018
Quem passa pela Praça Califórnia, no bairro paulistano do Jardim Europa, se depara com uma estátua modernista que representa a tenista Maria Esther Bueno. Erigida em vida, ela marca os feitos da maior tenista brasileira. Essa praça está situada na porta dos fundos da Sociedade Harmonia de Tênis, clube no qual se podia encontrar Maria Esther com frequência, não apenas se exercitando, mas muitas vezes acompanhando carinhosamente os jovens tenistas que ali treinavam, sonhando com o dia em que seriam os ídolos do presente, dando dicas e, principalmente, conselhos. Sua grande preocupação com a nova geração era a abundância de facilidades e recursos que muito mais prejudicam do que ajudam a vida do atleta. Ela falava isso, sem dúvida, olhando para a própria trajetória de mulher brasileira que teve que conquistar o mundo, começando pela Europa.
Vale aqui uma digressão histórica para situar o tênis no cenário do esporte mundial. Considerada uma modalidade aristocrática, praticada nos gramados ingleses e nos saibros franceses, antes da invenção das quadras de piso sintético, atravessou o século XIX como uma possibilidade de prática esportiva para homens e mulheres que se apresentavam publicamente para jogar com trajes sociais que pouco expunham o corpo feminino. A falta de contato corporal com as adversárias levou o tênis a abrir as portas dos Jogos Olímpicos para as mulheres em 1900, nos Jogos de Paris, para nunca mais se fechar. Porém, as mesmas disputas relacionadas com o profissionalismo, que tiraram o futebol dos Jogos de 1932, levaram o tênis a sair do programa olímpico em 1928 e só retornar como modalidade de demonstração em 1968 e 1984 e, voltando a ser competitivo nos Jogos de Seul, em 1988.
Esse fato marcou a carreira de Maria Esther Bueno, que começou sua carreira de atleta jogando tênis no extinto Clube de Regatas Tietê, na década de 1950. Exibiu ao mundo um estilo que a levou à conquista do título de simples, na quadra de grama de Wimbledon, em 1959, aos 19 anos, um feito impensável para quem viajava sozinha e heroicamente carregava equipamentos, coragem e a determinação de imprimir seu nome na história. Não bastasse isso, enfrentava toda a resistência por ser uma mulher fora de seu tempo, em um país no qual a legislação tornava as mulheres reféns de seus pais ou maridos. Vale lembrar que no Brasil dessa época as mulheres casadas precisavam de um consentimento escrito de seus cônjuges para poder viajar.
Na década de 1960 reinou nas quadras de tênis mundo afora. Ganhou 589 títulos internacionais, 19 torneios de Grand Slam (Aberto da Austrália, Roland Garros, Wimbledon, Aberto dos EUA) e foi a primeira mulher a conquistar os quatro torneios em um mesmo ano. Esses feitos a levaram a ser considerada a melhor tenista do mundo em 1959, 1960, 1964 e 1966, momento em que uma lesão no cotovelo direito a fez se retirar de quadra para se reabilitar. Em sua época de tenista, diante da inexistência do tie-brake, algumas de suas partidas chegaram a ter mais de dez horas, o que justificou a lesão que a acometeu denominada tennis elbow. Prova de determinação, passou a jogar com o braço esquerdo e voltou a jogar no circuito na década de 1970, sem alcançar os mesmos resultados após várias cirurgias.
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Exibiu ao mundo um estilo que a levou à conquista do título de simples, na quadra de grama de Wimbledon, em 1959, aos 19 anos, um feito impensável para quem viajava sozinha e heroicamente carregava equipamentos, coragem e a determinação de imprimir seu nome na história.
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Pouco se escreveu ou registrou sobre os feitos da tenista brasileira, que ganhou vários títulos em simples e duplas, inclusive com Billie Jean King, o título de duplas em Wimbledon, em 1965. Vale ressaltar que a americana já teve sua história contada pelos produtores de Hollywood.
Reconhecida como uma das grandes campeãs do tênis de todos os tempos, Maria Esther frequentava Wimbledon e também o US Open, anualmente, e não era raro ser convidada a assistir às competições do camarote real, compartilhando com os ingleses sua realeza esportiva. Foi a primeira sul-americana incluída no International Tennis Hall of Fame, em 1978, e ganhou uma estátua de cera no museu londrino Madame Tussauds.
No Brasil, porém, ela não chegou a desfrutar da mesma popularidade e reconhecimento, mas durante a preparação dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, Maria Esther foi lembrada com as honras que sempre mereceu. Emprestou seu nome para batizar a quadra central do Centro Olímpico de Tênis, carregou a tocha olímpica na Avenida Paulista e conduziu a bandeira brasileira para o hasteamento na cerimônia de encerramento do jogos. Ali então, a tenista era agraciada com aquilo que dizia ter faltado em sua carreira: a participação numa edição olímpica.
Certa vez a encontrei orientando o treino de um jovem e conversamos sobre o treino em si e outras tantas coisas que cercam a preparação de alguém que deseja deixar sua marca para a posteridade. Consciente da própria trajetória, falou sobre como foi ser mulher, brasileira e tenista em um país dominado pelo machismo, pela falta de incentivo ao esporte e pelo esquecimento daqueles que deveriam ser lembrados por serem excepcionais. Dito isso lhe apresentei a pesquisa Memórias Olímpicas e o desejo de poder escrever sobre sua vida, mas ela refutou o convite por nunca ter participado de Jogos Olímpicos, muito embora tivesse medalhas em Jogos Pan-Americanos. Finalizou a conversa dizendo que sua biografia estava sendo escrita por um jornalista inglês que a acompanhou por longos anos.
Nesse momento em que se consuma sua passagem lembro de todas essas cenas, a conversa na beira da quadra, a estátua na frente da porta dos fundos do clube em que jogou durante anos, de Paul Ricœur e os conceitos de arquivo, documento e vestígio, na obra Tempo e Narrativa. A tenista brasileira de maior prestígio da história teve seus feitos arquivados e documentados nos lugares onde ela construiu sua história e desfrutou do prestígio e do reconhecimento. Em seu próprio país, restaram vestígios de sua carreira, que sua morte faz emergir dos arquivos daqueles que durante as últimas décadas acompanharam o tênis. E então, não apenas a estátua da Praça Califórnia cumpre sua função, mas, lembrando Le Goff, esses documentos agora também são monumentos.
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