Por Vitória Régia da Silva*
20 DE JUNHO DE 2018
Para Marina Nucci, pós-doutoranda na Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), uma ciência mais feminista não se resume à presença de mais mulheres na produção de conhecimento. Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS/UERJ), Nucci acredita que para alcançar a equidade é necessária uma nova perspectiva, de crítica ao próprio conhecimento científico, que deve levar em conta as desigualdades de gênero em sua prática. Em entrevista a Gênero e Número, a pesquisadora explica o movimento neurofeminista e fala sobre as conclusões da sua pesquisa. “O ponto de partida deve ser não lidar com as desigualdades como se fossem ‘naturais’ ou ‘imutáveis’, mas sim tentar compreender de que forma elas se estruturam na sociedade, e, assim, tentar combatê-las”, diz a pesquisadora.
Gênero e Número: De que maneiras as ciências, por meio de teorias sobre uma suposta inferioridade das mulheres, ajudaram a justificar e manter estruturas de dominação delas pelos homens?
Marina Nucci: O que diversas pesquisadoras da área que podemos chamar de “crítica feminista à ciência” têm mostrado é que a ciência, ao contrário do que muitas vezes é pensada no senso comum, não é neutra, mas sim uma atividade humana inseparável do contexto social. Ou seja, não há ciência apolítica, já que ela está sempre emaranhada a fatores sociais, políticos, culturais, econômicos. Assim, ideais acerca de feminilidade e masculinidade, sexo e gênero, também fazem parte desse emaranhado que compõe a construção do conhecimento científico.
Ao longo de anos, cientistas se dedicaram intensamente em buscar diferenças – do ponto de vista da “natureza” e da “biologia” – entre homens e mulheres, que pudessem justificar uma suposta inferioridade feminina e, consequentemente, a exclusão das mulheres da vida pública e política. Como mostram autoras como Londa Schiebinger, definições científicas do corpo feminino – e, por extensão, do papel social das mulheres–, foram determinadas por uma comunidade científica da qual as mulheres praticamente não faziam parte, e seus resultados serviram para legitimar ainda mais essa exclusão.
Para trazer um exemplo do contexto brasileiro, o trabalho de Fabiola Rohden, que analisou teses de medicina do século 19 e início do 20, mostrou como cientistas da época diziam que meninas não deveriam ser “demasiadamente estimuladas intelectualmente”. Isto porque, por um lado, este estímulo seria inútil, já que a inteligência das mulheres seria sempre inferior à dos homens, e, por outro lado, seria perigoso, pois desviaria para o cérebro a energia que deveria ir para os órgãos reprodutivos – uma vez que a maternidade seria o “destino natural” das mulheres.
Gênero e Número: Como cientistas têm conseguido repensar e desfazer as teorias científicas que contribuíram para a manutenção das desigualdades entre homens e mulheres ao longo dos séculos?
Marina Nucci: A Londa Schiebinger tem um livro muito interessante chamado “O feminismo mudou a ciência?”, em que ela se propõe a pensar sobre as mudanças que o feminismo trouxe para o campo científico. O argumento da autora é que essas mudanças não são apenas no sentido de uma maior presença de mulheres na ciência – o que é fundamental –, mas também no próprio conhecimento científico.
Além disso, muitas são as discussões em torno da possibilidade de se fazer uma ciência que parta de uma perspectiva feminista, ou seja, que leve em conta, por exemplo, as desigualdades de gênero em sua prática. Neste sentido, a filósofa feminista Donna Haraway vai propor a ideia de “saberes localizados”. Assim, ela propõe ir além da denúncia de vieses científicos e separação entre uma suposta ciência “boa” e ciência “má”. Para ela, tomar posição é a palavra-chave. Segundo Haraway, a ciência feminista, portanto, é uma ciência que possui um posicionamento crítico.
Gênero e Número: Na sua pesquisa de doutorado, você investigou um movimento de crítica feminista na neurociência, as “neurofeministas”. O que é esse movimento e por que ele é importante?
Marina Nucci: No doutorado pesquisei a rede NeuroGenderings, que é um grupo internacional formado por pesquisadoras de diferentes áreas de conhecimento e de atuação, e de diferentes instituições e países (especialmente países europeus, Estados Unidos e Canadá). Elas se auto intitulam “neurofeministas” e, partindo de uma perspectiva de crítica feminista à ciência, procuram examinar a produção de conhecimento neurocientífico e combater o que chamam de neurossexismo. Ou seja, procuram combater estereótipos em relação à masculinidade e feminilidade que estariam presentes em grande parte da produção das neurociências e na sua divulgação para o público mais amplo. Aquela ideia simplificadora de que há um “cérebro feminino” e um “cérebro masculino”, por exemplo, que vimos com frequência em revistas de divulgação científica, seria um exemplo do que elas chamam de “neurossexismo”.
Além da crítica à ciência, as neurofeministas estão engajadas em produzir uma neurociência situada, assumidamente feminista, que não deixe de lado a materialidade dos corpos – e especialmente do cérebro –, ao mesmo tempo em que se preocupam politicamente com as hierarquias de gênero. Se trata, portanto, de um importante movimento de crítica e resistência feminista dentro do campo das neurociências.
Gênero e Número: É possível produzir uma ciência feminista ou que não reforce as hierarquias entre os gêneros? Quais seriam as diferenças entre essa ciência feminista e a ciência “tradicional”?
Marina Nucci: A diferença principal é a tomada de posição, como diz Haraway. Ou seja, uma ciência que parte da perspectiva feminista precisa explicitar seu posicionamento crítico. Além disso, se a ciência não é nunca neutra e nem pode ser isolada dos contextos sociais, culturais e políticos, isto é, se todo conhecimento é situado, uma ciência feminista precisa também explicitar os contextos nos quais o conhecimento produzido por ela é construído.
Gênero e Número: De que maneira essa ciência feminista leva em conta as desigualdades sociais referentes a raça e sexualidade?
Marina Nucci: O ponto de partida deve ser não lidar com as desigualdades como se fossem “naturais” ou “imutáveis”, mas sim tentar compreender de que forma elas se estruturam na sociedade, e, assim, tentar combatê-las.
Gênero e Número: Embora as mulheres já sejam maioria na graduação, no mestrado e no doutorado no Brasil, elas ainda são minoria no topo das carreiras científicas e acadêmicas. Por que isso ainda acontece? Como isso se reflete no conhecimento científico produzido no país?
Marina Nucci: Há diversos fatores para explicar essa desigualdade, que, sem dúvidas, impacta negativamente a diversidade do conhecimento científico produzido no país. Certamente, um fator importante é o fato da maternidade e do trabalho doméstico continuarem recaindo muito mais sobre as mulheres do que sobre os homens. Recentemente têm surgido mobilizações importantes com o objetivo de chamar atenção para essas desigualdades, como o movimento “Maternidade no Lattes”, iniciado depois do I Simpósio sobre Maternidade e Ciência. A estratégia do movimento é chamar atenção para o impacto da maternidade na carreira das mulheres cientistas, fazendo com que agências de fomento e instituições de pesquisa considerem a maternidade como parte da carreira das cientistas.
*Vitória Régia da Silva é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.
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