Derivado da série “Onze Homens e um Segredo” tem no elenco de grandes atrizes a força maior de um filme regido por velhos valores
por Pedro Strazza
Em tempos nos quais Hollywood encontra-se dominada por grandes blockbusters de orçamento milionário (e metas de lucro ainda maiores) e filmes minúsculos que são criados para render ao máximo nas porcentagens feitas entre os gastos e os ganhos, é fácil para que um projeto como “Oito Mulheres e um Segredo” soe como uma verdadeira anomalia dentro do atual sistema de estúdio estadunidense. Apesar de cumprir com a ideia de universo cinematográfico recém-adquirida pelo circuito ao servir de derivado “feminino” à franquia dirigida por Steven Soderbergh nos anos 2000 (esta por sua vez baseada na comédia homônima de Lewis Milestone com Frank Sinatra e Dean Martin), o longa é também uma obra de médio orçamento baseada pura e simplesmente no “star power” agregado de seu elenco de atrizes, características estas que compõem hoje um dos tipos mais raros de produto do cenário da indústria cinematográfica do país.
Ao mesmo tempo, porém, a produção comandada por Gary Ross também parte de uma premissa que é resultado de toda uma conjuntura do cenário ao qual pertente, em especial por conta da inversão de gênero que no fundo serve como grande mote de existência da obra. Depois de três capítulos centrados no ladrão profissional Danny Ocean (George Clooney) e seus roubos engenhosos feitos em parceria com seus dez, onze e doze homens, agora é a vez da irmã do antigo protagonista, Debbie (Sandra Bullock), assumir as rédeas da série e praticar seu próprio assalto ambicioso junto de um grupo de mulheres que fazem do crime uma grande arte. Como o perfil das integrantes escolhidas a dedo pela personagem e sua amiga Lou (Cate Blanchett) bem sugere, é deste alinhamento entre o novo e o velho que o filme então passa a funcionar.
Esta mistura não surge de forma direta no longa, mas acontece com base em uma reconfiguração involuntária de elementos característicos da série na narrativa. Roteirista nascido e tornado mão-de-obra típica de Hollywood, Ross em nenhum momento procura escapar do convencional e toca o projeto em campos confortáveis – quase toda a história escrita por ele e Olivia Milch é baseado no parentesco de Debbie com o agora falecido Frank, seja no “ramo da família” ou na premissa do roubo com segundas intenções – mas ao mesmo tempo esta sua predisposição em repetir grande parte das estruturas do remake de Soderbergh acaba por render um conjunto de apropriações do imaginário dos filmes pela ótica de um universo pretensamente feminino e enxergado como fútil que ajuda o filme a se equilibrar sozinho.
A fala de Debbie a Lou sobre as mulheres serem “invisíveis à sociedade” e como isso é vantajoso a ela talvez seja o momento da produção que mais escancare este viés do derivado ao espectador, mas é no cenário luxuoso da moda e das festas que Ross de fato encontra voz própria para desenvolver este lado do projeto. Por mais que tente se parecer aos ambientes grandiosos dos cassinos da trilogia (uma imitação bem barata, considerando o nível de comprometimento dos dois cineastas envolvidos com a fotografia digital), os lugares percorridos por “Oito Mulheres e um Segredo” no fundo partem de uma lógica de aparências pelo glamour que é muito distinta em relação ao capitalismo selvagem do qual Soderbergh queria pelo menos triunfar sobre em “Onze Homens e um Segredo”. O fato do golpe do grupo ser armado no famoso Met Gala, neste sentido, não vem por acaso: é como se pelo roubo do colar valiosíssimo da Cartier as “oito de Ocean” subjugassem também o caráter inacessível do desejado e glamurizado baile, descrito por elas mesmas como “a festa mais exclusiva dos Estados Unidos”.
O derivado parte de uma lógica de aparências e glamour que é muito distinta do capitalismo selvagem de “Onze Homens…”
Esta particularidade do roteiro também é fundamental para salvar o filme da completa inoperância ao qual ruma porque de certa forma ele desarma parte dos esforços extremamente frágeis da produção em tentar se conectar à “mitologia” geral da série. A história escrita por Milch e Ross muitas vezes se mostra dividida entre o planejamento do furto do colar e as seguidas referências e participações especiais de elementos do grupo original, uma atitude cuja maior vítima acaba sendo o próprio arco de Debbie, que vê a vingança contra o ex-namorado que a botou na prisão (Richard Armitage) se perder frente a ideia continuamente acenada de que a personagem estaria engendrando toda aquela ação apenas para reafirmar sua reputação diante do irmão mais famoso. Cenas como o desfecho no cemitério inclusive são onde a trama mais patina, até porque tornam o todo um tanto dependente do parente mais velho.
São problemas, porém, que mais prejudicam a objetividade do projeto – o terceiro ato, por exemplo, se rende a reviravoltas em excesso, mesmo aos padrões de um filme de roubo – que o esvaziam de suas qualidades, pois no geral o diretor consegue se virar na hora de reproduzir minimamente a dinâmica dos capítulos comandados por Soderbergh no novo cenário. Embora a montagem seja mais guiada pela economia de tempo de cena que por uma ritmo esperto e os diálogos se vejam despidos do tom de cumplicidade característico das relações de “brodagem” de nível hollywoodiano, o derivado sabe como parear suas atrizes para construir diferentes químicas de humor nos entreatos – a cena das personagens de Helena Boham Carter e Mindy Kaling na loja do cobiçado colar é especialmente divertida – e desenvolver os preparativos e execução do plano de uma forma atraente.
O filme sabe como parear suas atrizes para construir diferentes químicas de humor nos entreatos
Mas quem sustenta toda esta estrutura é o elenco, uma força que o longa reconhece do princípio e dá todo o espaço disponível. Cada uma a seu jeito, Bullock, Blanchett, Boham Carter, Kaling, Anne Hathaway, Rihanna, Sarah Paulson e Awkwafina demonstram aqui um bom domínio sobre seus papéis na mesma qualidade de seu entrosamento coletivo, criando individualidade a seus personagens mesmo quando eles são na base grandes repetecos ou combinações dos perfis do grupo masculino. É uma dinâmica tão calcada na sororidade que consegue fortalecer a narrativa mesmo sendo incapaz de aspirar à mensagem de força feminina que busca – cenas como da contratação de atrizes mais velhas para o golpe parecem ter um objetivo que não sabem (ou não conseguem) expressar na telona.
As oito atrizes também são responsáveis, no fim, por resolver o balanço de uma proposta do passado com conceitos dos tempos atuais, uma questão de equilíbrio que se prova a maior das fragilidades da obra. Produto de uma era já encerrada na indústria, “Oito Mulheres e um Segredo” é inteligente em assumir seu valor como antiguidade no cenário, uma medida que mesmo privando-o de momentos narrativos valiosos pelo menos lhe confere alguma autenticidade em meio às pilhas de remakes e “soft reboots” lançados semanalmente pelos estúdios.
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