A pressão sobre as pessoas mais velhas vem de todos os lados, é diversa e implacável. É o que nos diz o texto de Danilo Thomaz, repórter de Época em São Paulo.
Nas minhas curtas férias de novembro, descobri, na rua onde moro, na região central de São Paulo, uma personagem que me chamou muito a atenção. Trata-se de uma senhora de cabelos brancos, com dificuldades para se manter loiros, apesar da tintura; olhos pequenos escondidos por maquiagem escura e pelas rugas na base da testa; boca pequena e fina coberta sempre por batom rosa e as bochechas caídas pelos seus mais de setenta anos de vida – presumo.
Vestida sempre com um casaco grosso e puído, por cima de uma blusa de tecido fino e barato, e meias que nunca combinam com seu único sapato, ela passa quase todo o tempo do dia na rua. Sozinha. Não fala, não sorri, não conversa com os mesmos passantes que ela vê, e que a veem, todos os dias.
No início da manhã, ela toma café na padaria. Ao sair dali, senta-se em uma cadeira que deve ser posta especialmente para ela, em frente a uma loja que vende e conserta relógios antigos; na poltrona para clientes da farmácia de manipulação ou numa das mesas de um restaurante pequeno, no andar térreo de um prédio, onde passa horas em silêncio e sem consumir.
O olhar , sempre distante, acompanhando o silêncio e a expressão ranzinza. A falta de amabilidade na expressão dela me impediu de tentar qualquer assunto para sanar as questões que começaram a se avolumar a seu respeito. Queria saber se ela mora por ali, com quem mora, se tem filhos, netos, qual o relacionamento que tem com a família. Se é viúva, aposentada, solteirona convicta, se desistiu do amor ao sofrer uma perda e/ou decepção, se vive de pensão ou de sua própria aposentadoria.
Pelo que vi, presumo se tratar de uma moradora antiga de uma rua habitada moradores antigos, migrantes e estudantes. Deve morar sozinha e, se tem família, o que não me parece, não deve tolerá-la ou ser muito tolerada por ela. Também não deve ter amigos, apenas os conhecidos que, por misericórdia e pena, cedem um espaço de seus comércios para ela. A julgar pela roupa, deve sobreviver com dificuldades financeiras, como tantas senhoras, viúvas e solteiras.
A velhice custa tão caro quanto a infância e a adolescência. A principal questão que me veio, que ela talvez não possa responder, é a respeito de como tratamos, no Brasil, as pessoas que já passaram dos seus 60 anos. Sobretudo as mulheres, que, entre viúvas e solteironas, são a maioria nessa faixa etária e costumam durar 10 anos a mais que seus companheiros.
Há grupos com dança, baile, aula de pintura. Aulas de natação, aeróbica e informática para que aprendam agora o que não puderam aprender na juventude. Uma série de frases de efeito e bordões afirmam ser a “terceira idade” a “melhor idade” e há uma pressão para que mesmo elas não vistam o luto como suas mães, tias e avós. E que, uma vez viúvas, tratem logo de arrumar um namorado.
Usar o adjetivo “velho” é considerado tão ofensivo quanto um apelido racista. O que me parece, por detrás disso, é que nós não queremos que nossas avós, tias-avós, bisavós, tias-bisavós se comportem como senhoras, velhas, idosas – apesar da definição a esse respeito não ter a mesma clareza que no passado. Não queremos que pessoas que já viveram o seu tempo de juventude, idade adulta, maturidade, vivam o que a velhice proporciona.
Não há, como disse, uma definição sobre “o que é ser velho hoje”, mas sabemos que, nessa idade, dorme-se menos, tem que se tomar cuidados físicos que na juventude são ignorados, há mais gastos com a saúde do que com o lazer, há tempo livre durante o dia e menos tempo de vida. Há a acentuação da rigidez em alguns, o abandono de várias convenções e certezas em outros, sobretudo depois dos netos. Há mais perdas de familiares, conhecidos e amigos. Há a resignação diante da certeza da finitude.
Aqueles que admitem o cansaço, que não querem dançar nem aprender a mexer no computador, acabam colocados para fora da cerca do mundo de hoje, muitas vezes por suas próprias famílias, que não têm a menor paciência para lidar com quem não segue o mesmo ritmo de vida que eles.
É, presumo, o que acontece com a senhora minha vizinha. E foi o que aconteceu com a minha avó paterna, sempre criticada por não sair, caminhar, fazer cursos como suas amigas s e cunhadas e não estar interada dos assuntos que interessavam aos seus netos mais novos. Como a minha bisavó, sua mãe, por não querer que mexessem em suas centenas de flores, não gostar de barulho, não ter paciência com crianças que sabiam falar, andar, correr e gritar.
Pouco antes de morrer, uma irmã dessa avó e filha dessa bisavó, Terezinha, uma mulher de humor ferino como tantas na minha família (salve!), descobriu que estava com um problema nos rins e que teria de fazer hemodiálise. Uma nora, casada com seu filho mais velho e que sempre se fez presente nesses momentos, se ofereceu para acompanhá-la às sessões. Na sala de hemodiálise, as outras senhoras jogavam bingo valendo bugigangas, conversavam, riam e falavam que ia acabar tudo bem para elas. Essa tia, em seu constante desprezo por tudo que não dissesse respeito a ela, olhava para aquelas senhoras e dizia (não pensava, dizia!): “Que coisa mais idiota ficar jogando bingo, estão todas morrendo e ficam com essa bobagem.”
Envergonhada, a nora disse que não iria mais acompanhá-la às sessões. A sua recusa provocou uma crise familiar. Todos a criticavam por não querer mais acompanhar a sogra, mas, conhecendo o temperamento da tal e certos de que ela diria a mesma coisa em todas as sessões, tampouco estavam dispostos em fazê-lo.
Terezinha morreu poucas após poucas sessões, sem ter apostado no bingo e, apesar da insistência dos filhos e noras, sem ter sido mais amável com suas companheiras de hemodiálise, que queriam ser suas amigas. Um ano depois de sua morte, as brigas por conta do seu (mau?) comportamento continuam. Sem a menor chance de se chegar a um acordo ou tentar compreender o que queremos para nossas avós.
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