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sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

A maldade

POR LUCIANA SADDI

Entrevista com a psicanalista e escritora, Sylvia Loeb, que recentemente abordou a maldade no romance, Heitor (ed. terceiro nome).

Luciana: Por que um romance sobre a maldade?
Sylvia: Nunca sabemos de antemão porque escrevemos. Você que é escritora, sabe disso, tanto quanto eu, não é verdade? Depois que escrevemos, aí sim, podemos nos perguntar e eventualmente responder por que escrevemos.
Assim, posso tentar dar uma resposta, mas não posso garantir que seja esse o motivo pelo qual escrevi Heitor.
Acho que vivemos rodeados por tanta violência, por tanta coisa que não compreendemos, que escrever sobre o que nos afeta é uma forma de tentar entender, ou ao menos metabolizar algo que nos faz mal, qual um processo digestivo. A violência que vemos nas ruas, nos jornais, na televisão, nos afeta, gera medo, faz mal. Ou nos isolamos, o que é muito difícil, ou tentamos ver do que se trata.

Luciana: como definir o mal?
Sylvia: Numa definição aparentemente simples, porém radical, é tudo o que atenta contra a vida. Preservar a vida implica em poder se alimentar, ter acesso à educação, a cuidados médicos, à moradia, enfim, tudo que preserve o ser biológico que somos. Como psicanalista, penso em vida também em outros aspectos:
- em vida mental, que implica na possibilidade de alimentar nossa curiosidade, em ter respostas para nossas questões, no uso do pensamento, faculdade tão preciosa que constrói caminhos. Pensamento que deve ser apreciado na sua diversidade, na sua originalidade; é importante poder se apropriar do próprio pensamento, o que nos ajuda a atingir metas, a evitar modos violentos e agressivos de resposta aos estímulos que vem de fora e de dentro de nós mesmos.
- em vida emocional, que implica em abrigarmos pensamentos, sentimentos, sensações,  medos, enfim toda uma gama de emoções que nos afetam e perturbam, tentando entender , na medida do possível de onde elas provém.
- em vida amorosa, o que implica podermos nos colocar no lugar do outro, nos sensibilizar com a dor alheia, sem tirar a responsabilidade do outro e de nós mesmos. E se nesta vida amorosa couber um companheiro, uma companheira com que possamos compartilhar, estaremos no melhor dos mundos.
Conversar, possibilitando transformar o que nos afeta emocionalmente, por que muitas vezes afeta-se o corpo por meio de doenças. Evitar isso é propiciar vida de qualidade. Sentir-se querido, ser solidário com o padecimento do outro, sentir que outros são solidários conosco, tudo isso gera vida, gera saúde.

Dou-me conta que você perguntou o que é o mal, e eu respondi como evitar o mal.
Então tentando responder mais diretamente à questão: o mal é o que impede de pensar, de sentir, de conversar. É levantar um muro de silêncio, ou de indiferença, é impor verdades definitivas e sem outra possibilidade que não a de obedecer e acatar. Pais que não permitem o diálogo, que não respeitam o outro sujeito que é a criança, religiões radicais que impõem uma verdade absoluta, professores dogmáticos que impedem a criatividade, tudo isto configura o mal. Novamente estou falando mais dos aspectos emocionais, que muitas vezes  passam desapercebidos. Quantas vezes ouvimos um adulto dizendo a um jovem Não gosto de te castigar, mas é para seu próprio bem.  E em nome do “bem”, arbitrariedades são cometidas. Há um filme extraordinário, “A Fita Branca” que fala sobre este tema de modo magistral.
Em outro diapasão não muito diferente, encontramos Heitor, o personagem do livro: egoísta, indiferente aos problemas da família, nenhum gesto de violência física; sua violência encontra-se no modo de funcionar, no modo de usar a inteligência, de manipular os que o rodeiam, em um processo tóxico de asfixiar os afetos.

Luciana: o que leva alguém a ser frio e indiferente? Isso ocorre com mais frequência do que imaginamos?
Sylvia: Mais uma vez, no campo da psicanálise, não temos respostas fechadas, do tipo, “se isso, então aquilo”.
O que podemos afirmar com algum grau de certeza é que a solidariedade, o afeto amoroso, a preocupação com o outro, enfim, todas as qualidades que prezamos e que são necessárias ao convívio humano, são construções, longas, trabalhosas e sem garantia. Em outras palavras, não nascemos virtuosos, nem bons, essas qualidades não estão nos genes: gene da bondade, da delicadeza.
Um bebê é um serzinho selvagem, por mais que doa às mães ouvirem isso. Digo selvagem no sentido de um ser da natureza, a quem importa apenas o prazer, o bem estar, que basicamente vem pela boca, pelo alimento que a mãe propicia. Ausência de fome, de frio, de calor, de dor, e temos um bebê feliz, assim como a maioria dos adultos também. A diferença é que o bebezinho não tem controle sobre seus impulsos. Se sentir fome, grita, esperneia, chora. Imagine este serzinho, com estas condições emocionais, em um corpo de adulto, com força física de um adulto!
O que estou tentando dizer é que nós humanos, ao nascer, somos um conglomerado de impulsos que procuram ser satisfeitos. Isso é vida na luta pela sobrevivência. É saudável, é assim que deve ser.
Mas se crescêssemos deste jeito, sem o trabalho de construção que os pais deveriam realizar, teríamos um mundo selvagem, um mundo do salve-se quem puder.
E quando digo trabalho dos pais, refiro-me a um conjunto de procedimentos que vão desde os cuidados materiais, como à obrigação ética, a responsabilidade de criar um ser para o mundo. Amar não é apenas suprir carinho e bens materiais, mas, sobretudo, dedicação, cuidado, atenção. Educar é não apenas ensinar, mas também proibir, dizer o que é certo, o que é errado, muitas vezes contrariar a criança ou o adolescente, dar referências, para que mais tarde, o filho possa aceitar ou refutar o que recebeu, construindo seus próprios parâmetros de comportamento.
Freud dizia que entre as maiores dificuldades que enfrentamos, o educar é uma delas. Governar e psicanalisar são as outras.
Se o longo trabalho realizado pelos pais, pelos professores, pela cultura, e isso não exime nem mesmo nossos governantes, que em última análise, são representações de identificação cultural, se isto der certo, teremos a probabilidade de criar um cidadão responsável, ético, amoroso. Se isto der certo, sublinho novamente, pois como disse anteriormente, a psicanálise não dispõe de receitas.

Luciana: qual o fascínio que a maldade exerce sobre nós?
Sylvia: Justamente pelo imenso trabalho cultural ao qual fomos submetidos: não podemos  expressar livremente nossos impulsos, o que absolutamente não quer dizer que eles estejam mortos ou inativos.
O fascínio que o mal exerce sobre nós advém justamente da possibilidade de viver no outro, fora de nós mesmos, sem o perigo que isto acarreta (inclusive o de sermos presos!), toda uma gama de impulsos, que foram domados à duras penas. Que impulsos são esses? Sadismo, agressividade, masoquismo, violência, inveja, rivalidade, desejo de destruição, mentira, falsidade.
Sim tudo isso faz parte de nosso ser, somo feitos dessa matéria e não a exercemos todos os dias, senão a vida em comunidade seria impossível.
Disso somos feitos e o longo processo civilizatório que é processado dentro de cada família, por cada pai, por cada mãe, não extingue, e nem poderia extinguir, nossa natureza. Daí o fascínio que sentimos pela violência, pelos filmes de guerra, pelos horrores que muitas vezes assistimos na televisão e depois podemos dormir, sossegados, porque a barbárie está fora de nós.
Saber do que somos feitos, é a única forma de podermos lidar com o mal, intrínseco no humano.

Trecho do livro, Heitor de Sylvia Loeb:

Capítulo XXII
Heitor chegou à sala de reunião da diretoria às 10h03min, como sempre. Fazia questão dessa pontualidade. Admirava os trens de Londres.
Em frente à sua cadeira, uma xícara de chá fumegante.
Os homens calaram-se e levantaram-se para cumprimentar o chefe com um pequeno aceno de cabeça.
Esperavam.
O silêncio era total.
Os olhos amarelos do patrão pousavam vagarosamente de homem em homem. Uns sustentavam o olhar, outros se mexiam, tossiam ou sorriam. Fixava alguns por um tempo maior. O da direita tinha uma enorme marca de suor no peito e nas axilas, que manchava o terno claro. Heitor pensou na solução leitosa, composta de proteínas, açúcares, amônia e gorduras que desemboca nos poros de onde emergem os pêlos e a gordura da pele, e que, em contato com as bactérias do corpo, produzem mau cheiro. O homem da frente enxugava gotas de suor que lhe escorriam pelo pescoço, terreno propício para o crescimento de microorganismos e fungos. Situações de estresse aumentam a produção das glândulas sudoríparas e liberam uma série de hormônios no sangue que serão exalados junto com o suor.
Cheiro de medo. Heitor conhecia esse cheiro.
Só se escutava o som do chá sendo vagarosamente sorvido.

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