Por: Bruna Rocha*
Desde que li um texto da Heleieth Safiioti[1] em que ela abordava o machismo no contexto da violência intrafamiliar, operando em conjunto com a adultização social, fiquei com vontade de escrever sobre o tema. Adultização é aqui entendida como o processo através do qual os adultos se colocam como mais importantes, inteligentes e conscientes do que as crianças e os jovens; o que viabiliza um exercício de poder arbitrário, inquestionável e naturalizado.
Esse fenômeno não tem nada a ver com tradição, religiosidade ou experiência de vida – tem a ver com um modo equivocado de construção dos papéis sociais, no qual estão em jogo muito mais relações de dominação/enquadramento ideológico do que de pedagogia, educação ou qualquer outra coisa que queiram chamar.
O Estado brasileiro só veio a criar uma legislação específica para crianças e adolescentes há poucos anos, assim como para mulheres, negros e jovens. Até então, éramos todas e todos, indivíduos invisíveis para as estruturas sociais. Muito me interessa entender as articulações entre os sistemas de opressão através dos quais perpassa a construção dos sujeitos.
Pensar em adultização e machismo me fez refletir como esses sistemas se autoajudam e se autocamuflam no processo de moldagem e manutenção dos papéis de gênero. Minha análise foi “apimentada” por uma matéria que li esses dias na internet, na qual havia uma pesquisa demonstrando que os homens só chegam à vida adulta aos 54 anos:
Carrinho de limpeza, binquedo “para meninas”. Fonte: Feministing. |
“A pesquisa revelou inseguranças que não deixam o homem amadurecer mais jovem, incluindo imperfeições físicas, problemas com dinheiro e solidão. Eles citaram medos como o de não conseguir adquirir a primeira casa, perder o cabelo e estar desempregado. O processo de envelhecimento também apareceu com força, além de ter que lidar cabelos grisalhos, queixo duplo e mamas” (Fonte: Site QGA).
Embora tenha trazido dados restritos, com pouca representatividade, e optado por uma abordagem irrelevante, não-problematizadora e superficial, a matéria me provocou a vontade de escrever sobre as ironias circunscritas no movimento de infantilização/adultização tanto dos homens quanto de nós mulheres – extremamente maleável à manutenção das opressões e privilégios.
Da adultização precoce à infantilização tardia, os homens
Ainda meninos, recebem status adultizados para reforçar sua relação de poder nos espaços públicos e privados: são incentivados ao sexo e à violência, são chamados de homenzinhos, aprendem a dirigir antes dos 18, têm a incumbência de proteger a casa na ausência do pai, podem assediar mulheres na rua e não devem chorar. Já na vida adulta, preservam as características e funções infantis para manter privilégios: não colocam sua própria comida, não lavam suas cuecas, não sabem administrar a casa, não sabem lidar com as emoções, precisam ser cuidados, mimados e protegidos pela sua mãe imortalizada – na própria mãe, tia ou companheira.
Da adultização precoce à infantilização tardia, as mulheres
Desde pequenas, precisamos aprender todas (eu disse todas) as tarefas domésticas, desde as comidinhas do jogo de panelinhas até o cuidado das bonecas – nossos futuros bebês -, devemos ser compreensivas, ter postura de moça, saber se comportar nos lugares, falar de forma comedida, usar roupas da moda, maquiagem, disputar com a coleguinha para ver quem é mais bonita, ter planos para o casamento e sofrer de amor. Quando crescemos, mantemos todas as responsabilidades que já tínhamos, mas voltamos a ser tratadas como crianças: não sabemos tomar decisões sozinhas, precisamos de proteção, não devemos andar nas ruas, não devemos falar palavrões, não devemos falar de sexo, não podemos abrir a porta do carro e muito menos dirigir. Enfim, todos os cuidados paternalistas, os quais sabemos muito bem para que servem: controlar nossos corpos e nossas vidas.
Essa infantilização das mulheres, opera muitas vezes sob as artimanhas da filoginia[2] , termo usado para definir o contrário da misoginia no âmbito do machismo, ou seja, quando a opressão se dá de forma falaciosa, através de gestos de “amor”, “adoração” e “respeito”.
Não é fácil executar uma estratégia que combata todas estas opressões entrelaçadas, visto seu voraz mecanismo de fortalecimento mútuo. Por isso apostamos na cultura feminista. Para nós, é fundamental esmiuçar as articulações semânticas do Patriarcado, construindo uma alternativa multifacetada que dê conta de travar a disputa de valores nos mínimos e nos máximos detalhes.
É nas linhas e entrelinhas da história que teremos de reescrever este mundo.
* Bruna Rocha é militante da Marcha Mundial das Mulheres da Bahia.
[1] Heleieth Safiioti, “Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero”.
[2] Leia uma boa reflexão sobre filoginia aqui na Carta Capital.
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