Por Fernando Moreira Gonçalves
A Convenção sobre os Aspectos Civis do Seqüestro Internacional de Crianças, assinada na cidade de Haia em 25 de outubro de 1980, e internalizada no Direito pátrio por meio do Decreto 3.413, de 14 de abril de 2000, significou grande avanço por parte do Brasil no combate ao deslocamento e retenção ilícitas de crianças, pois “O compromisso assumido pelos Estados-membros, nesse tratado multilateral, foi o de estabelecer um regime internacional de cooperação, tanto administrativa, por meio de autoridades centrais como judicial. [...] A convenção também recomenda que a tramitação judicial de tais pedidos se faça com extrema rapidez e em caráter de urgência, de modo a causar o menor prejuízo possível ao bem-estar da criança.” (trecho do voto da então ministra do STF Ellen Gracie ao julgar a ADPF 172/RJ, em 21/08/2009).
Muitos avanços e algumas incompreensões marcaram os anos iniciais de vigência dessa convenção entre nós. Parte dessas incompreensões pode ser creditada à grande carga emocional sempre presente nesses casos, pois nenhum outro tipo de processo judicial toca tão profundamente o aspecto emocional dos atores processuais nele envolvidos como aquele em se decide o destino de uma criança. E também em nenhum outro caso é tão verdadeira a afirmação de Ruy Barbosa, de que Justiça tardia não é Justiça, mas uma injustiça qualificada.
Por isso, é imperioso tratar esses casos com celeridade, sem atropelar procedimentos legais ou garantias constitucionais, fazendo valer o compromisso assumido pelo Brasil por meio da convenção, mas sempre com respeito aos direitos de todos os envolvidos em casos dessa natureza.
Um caso de grande repercussão na mídia, e que por isso muito contribuiu para divulgar a existência e as regras estabelecidas pela convenção, foi o famoso caso de retenção no Brasil do garoto Sean Goldman. Nascido nos Estados Unidos, em 25 de maio de 2000, ele foi trazido ao Brasil por sua mãe, Bruna Bianchi, em junho de 2004, com autorização para aqui permanecer por apenas duas semanas. A mãe, de nacionalidade brasileira, decide manter indefinidamente a criança no Rio de Janeiro, comunicando esse fato ao pai, de nacionalidade norte-americana, que inicia uma batalha judicial para o retorno de seu filho ao país de origem.
Com o falecimento de Bruna, em 21 de agosto de 2008, seu marido, conhecido advogado de tradicional família carioca, requer e obtém a guarda do menor, por decisão do juízo de Direito da 2ª Vara de Família do Foro Central do Rio de Janeiro.
Após ser provocada pela Autoridade Central Administrativa Federal (ACAF) — órgão encarregado de fazer observar a Convenção de Haia no Brasil e que, por sua vez, foi acionado pelo órgão correspondente nos Estados Unidos —, a União, em 26 de setembro de 2008, requereu a busca, apreensão e restituição do menor perante a 16ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro (processo n.º 2008.51.01.018422-0).
Após muita discussão e decisões conflitantes proferidas pelo Judiciário brasileiro, o Superior Tribunal de Justiça decide pela competência da Justiça Federal para julgar o caso (Conflito de Competência 100.345/RJ, entre o Juízo Federal da 16ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado do Rio de Janeiro e o Juízo de Direito da 2ª Vara de Família do Foro Central do Rio de Janeiro).
Aqui se verifica a primeira lição de grande importância deixada pelo caso Sean: compete à Justiça Federal conhecer e julgar pedidos fundados na Convenção de Haia de 1980 para a restituição de menor ao país de residência habitual. Essa competência, hoje consolidada, exigiu muita discussão e aprendizado do Judiciário brasileiro para lidar com a aplicação de tratado internacional que era recente no ordenamento jurídico pátrio, pois foi preciso percorrer um longo caminho até se compreender que a Justiça Federal, ao decidir esses casos, não estava interferindo em julgamento a respeito do direito de guarda de menores, matéria de competência da justiça dos estados, mas apenas exercendo sua competência de julgar causa fundada em tratado internacional.
Dentre as medidas adotadas pela Justiça brasileira para a melhor compreensão e célere atuação em casos de cooperação internacional envolvendo a aplicação da Convenção de Haia de 1980, destaca-se a criação pela ministra Ellen Gracie, no ano de 2006, durante sua gestão como presidente do STF, do chamado Grupo de Haia, que incluía, dentre os seus componentes, magistrados para atuarem no importante papel de juiz de ligação, figura amplamente utilizada, com muito sucesso, no âmbito da União Europeia, mas até então praticamente desconhecida entre nós.
Vários outros pontos da Convenção de Haia de 1980, e a necessária celeridade na sua aplicação, ainda exigem maior reflexão por parte da Justiça brasileira, especialmente naqueles casos em que o processo de restituição da criança ao seu local de residência habitual se inicia antes de completado um ano da remoção ilícita, hipótese em que a convenção estabelece que restituição deve ser imediata.
Esse retorno imediato, objetivo estabelecido logo no artigo 1º do texto da convenção, deve ser lido em conjunto com o artigo 11 do mesmo tratado, que estabelece o prazo de seis semanas para que seja tomada uma decisão a respeito do retorno da criança ao seu país de origem.
Para que o cumprimento desse prazo seja possível, no entanto, é preciso que fique claro que o papel, no Brasil, do juiz federal que vai decidir pela aplicação da Convenção de Haia e eventual retorno da criança ao seu país de origem, limita-se a analisar se a remoção ou retenção da criança no Brasil foi ou não feita de maneira ilícita. Ou seja, não compete à Justiça Federal analisar questões relativas ao direito de família, como guarda, visita ou a conveniência a respeito de a criança ficar com a mãe ou com pai, pois essas questões devem ser decididas, de acordo com o texto da convenção, pelo juiz do local de residência habitual da criança.
Outra questão relevante que merece ser mencionada é que, não raras vezes, a parte que trouxe ou reteve a criança de maneira ilícita no Brasil requer estudo de adaptação social, alegando que pretende demonstrar que não atenderia ao interesse da criança o seu retorno ao país de origem, quando na verdade busca-se apenas protelar o julgamento do caso, pois o tempo corre sempre a favor de quem detém a guarda da criança, ainda que de forma ilegal.
Aqui, ressalte-se, trata-se de medida que somente pode ser deferida nos casos em que, entre a transferência ilícita da criança e o início do processo, decorreu prazo superior a um ano, nos termos do artigo 12 da convenção, que estabelece: “A autoridade judicial ou administrativa respectiva, mesmo após expirado o período de um ano referido no parágrafo anterior, deverá ordenar o retorno da criança, salvo quando for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo meio.”
O artigo 13, nas alíneas “a” e “b”, traz situações excepcionais que permitem ao juiz negar a restituição da criança. A única observação necessária a respeito desse artigo é que, justamente por se tratar de situações excepcionais, a norma deve ser interpretada de forma restritiva, sob pena de se transformar a exceção em regra. Além disso, o ônus da prova da ocorrência dessas situações excepcionais deve ficar a cargo de quem alega a sua ocorrência. Ou seja, não basta simplesmente alegar risco à criança no caso do seu retorno, é preciso comprovar essa alegação.
Ainda a respeito da celeridade, o artigo 14 da convenção traz uma regra de extrema importância, porque permite às autoridades administrativas ou judiciais brasileiras conhecerem diretamente as decisões judiciais proferidas pelo juízo do local de residência habitual da criança, sem necessidade de se aguardar qualquer procedimento de reconhecimento no ordenamento jurídico nacional da decisão estrangeira. Esse é um ponto extremamente relevante do tratado: a decisão da Justiça estrangeira não será simplesmente executada aqui no Brasil, fato que somente seria possível, à luz da nossa Constituição, após a concessão do exequatur pelo Superior Tribunal de Justiça. O que ocorre nesta hipótese é que o juiz brasileiro poderá conhecer, ou seja, receber a decisão estrangeira e analisá-la à luz da Convenção de Haia, como elemento de convicção a respeito da ilicitude da transferência da criança ao Brasil. Em outras palavras, o juiz brasileiro não vai aplicar em território nacional uma decisão proferida por juiz estrangeiro, mas vai simplesmente tomar conhecimento da decisão proferida no exterior, sem necessidade de qualquer procedimento de validação dessa decisão no Brasil, solicitando, se for o caso, o auxílio do juiz de ligação, para formar a sua convicção a respeito da ilicitude da transferência da criança.
Nesse ponto, assim como em diversos outros aspectos da convenção, há um papel fundamental a ser desempenhado pelo juiz de ligação, pois o juiz de ligação não só facilita o eventual contato entre o juiz brasileiro e o juiz estrangeiro, mas pode ter um papel de grande importância na solução de dúvidas e obtenção de informações junto às autoridades estrangeiras.
Por fim, sentenciado o feito, pode surgir a seguinte dúvida, não esclarecida pelo texto da convenção: qual o efeito do recurso interposto contra a sentença que determina a restituição da criança ao seu país de origem? Aqui, em princípio, por se tratar de uma ação de natureza cautelar, embora satisfativa, mas sem dúvida nenhuma cautelar, a regra no nosso sistema processual é o recebimento dos recursos apenas no efeito devolutivo, mas, nesse ponto, creio ser necessária a distinção de duas situações: 1) se entre a remoção ou retenção ilícita da criança e o início do processo houver decorrido prazo inferior a um ano, hipótese em que a convenção estabelece que o retorno deve ser imediato, não há dúvidas de que o recurso deve ser recebido apenas no efeito devolutivo e, com isso, o retorno da criança ao seu local de residência habitual deve ser, como estabelece a convenção, imediato; 2) na hipótese em que tenha decorrido mais de um ano entre a transferência da criança e o início do processo, no entanto, por cautela, creio ser prudente o recebimento do recurso também no efeito suspensivo, para que o retorno ao país de origem fique postergado para após o trânsito em julgado da decisão.
Feitas essas breves considerações, resta-me analisar o peso da responsabilidade que recai sobre os ombros do magistrado encarregado de decidir o destino da criança objeto do litígio, sabendo de antemão que a decisão em favor de uma das partes, em regra um dos genitores, significará o afastamento por milhares de quilômetros do outro genitor. Situações como essas me lembram trecho da obra de Piero Calamandrei, traduzida com o título “Eles, os juízes,vistos por um advogado”, em que o grande processualista italiano afirma: ”Sei de um químico que, quando em seu laboratório destilava venenos, acordava sobressaltado à noite, lembrando com terror que um miligrama daquela substância bastava para matar um homem. Como poder dormir seus sonos tranquilos o juiz, que sabe ter em seu alambique secreto aquele tóxico sutil que se chama injustiça, de que uma gota, escapada por erro, pode bastar não apenas para tirar a vida, mas, o que é mais terrível, para dar a toda uma vida um tormentoso sabor amargo, que nenhuma doçura nunca mais poderá consolar?” (obra citada, Ed. Martins Fontes, p. 347, São Paulo, 2000).
Respondendo por experiência própria à indagação do mestre italiano, digo que o juiz que tem sobre seus ombros o peso da responsabilidade de decidir questão de tamanho relevo e impacto na vida das partes, como é o sequestro internacional de crianças, simplesmente não dorme!
* O colunista Vladimir Passos de Freitas está de férias.
Fernando Moreira Gonçalves é juiz da 1ª Vara Federal de Jundiaí (SP), convocado no Tribunal Regional Federal da 3ª Região e mestre em Direito pela Universidade de Valladolid (Espanha).
Revista Consultor Jurídico
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