Recorrentemente trabalhamos problemas sociais de forma isolada, como se os elementos que compõem o complexo emaranhado das relações humanas agissem sozinhos em contextos sociais. Violência e gênero, assim, são dois elementos que são associados quando se fala sobre a violência de gênero, como é o caso da violência doméstica, mas ainda pouco se discute a relação que existe entre violência e gênero, e, principalmente, por que ela se reproduz.
A exemplo disso, em 2018, foi publicado o relatório do levantamento anual do SINASE – Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – o qual demonstra que 96% dos jovens em restrição e privação de liberdade é do sexo masculino, contra uma população de apenas 4% do sexo feminino. Em relação aos adultos, a estatística não muda muito: segundo o Conselho Nacional de Justiça, o Brasil, que conta com a 3º maior população carcerária do mundo, possui 95% de detentos do sexo masculino, contra apenas 5% do sexo feminino.
Diante desse contexto, pergunto: por que isso acontece? Qual é o motivo de a população carcerária ser predominantemente do sexo masculino? Homens são biologicamente muito mais predispostos ao crime do que as mulheres? Ou existem fatores reproduzidos simbolicamente pela sociedade, os quais levam à produção de uma masculinidade delitiva?
Notadamente, o tema da construção dos gêneros não é novo; há pouco se discutia as repercussões de um comercial sobre a produção de masculinidade tóxica, o qual foi objeto de diversas críticas pelo segmento ultraconservador. Entretanto, com o recente massacre na Escola Raul Brasil, em Suzano, tornou-se ainda mais latente discutir qual é a relação que existe entre a masculinidade denunciada por diversos setores da esfera pública e a produção da violência, pois ambas parecem caminhar de mãos dadas.
Em texto relacionado ao ataque em Suzano, publicado no Justificando, destacaram-se características do discurso compartilhado por membros de fóruns da deepweb, como o Dogolachan, acessado pelos atiradores. Tais características, que vão do ódio às minorias à irresignação por uma sexualidade frustrada, coincidem com elementos da masculinidade tóxica, diferenciando-se, evidentemente, pelo grau de extremismo em relação às colocações feitas.
O fato é, enquanto repetirmos dogmas como “menino veste azul, e menina veste rosa”, preciosismo difundido pela Ministra Damares, estaremos, na verdade, reforçando o simbolismo existente em relação aos gêneros, e, com isso, ratificando papeis sociais que reproduzem uma situação de violência. Quando afirmamos “menino veste azul”, não estamos fazendo uma simples referência à roupa; estamos implicitamente ratificando os padrões da tradição que dizem como sujeitos do gênero masculino devem se portar. E quais são esses padrões, senão padrões relacionados a fatores de violência?
Em estudo realizado com adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, Braatz[1] identifica em jovens do sexo masculino recursos discursivos que remontam a ideia de que a masculinidade é construída pela força, pela agressividade e pela ausência de tudo aquilo que é atribuído ao feminino, entendido como gênero frágil. Para os adolescentes entrevistados, a masculinidade é construída a partir da reafirmação de um status de poder e dominação, o qual se manifesta por meio da insensibilidade e pela rejeição de posturas “afeminadas”.
Com isso, podemos perceber que os elementos simbólicos reproduzidos desde a infância proporcionam condições para uma subjetivação que constrói a imagem de homens fechados ao diálogo, e que respondem a estímulos externos com uma linguagem não raro violenta. Nesse sentido, não havemos de falar apenas em violência física, mas em várias formas de violência, as quais são praticadas por todo tipo de sujeito aderente ao discurso do “macho alfa”. Para a cultura da dominação machista, não há filtros de etnia ou classe social – lembremos, outrossim, da fala recente de desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que em “brincadeira” realizou uma apologia ao estupro contra quatro juízas do mesmo órgão.
Para a Tiefenhermeneutik – ou seja, a hermenêutica do não dito[2] – as práticas reproduzidas de geração em geração adquirem voz, de modo que não é preciso que se diga diretamente aos adolescentes do sexo masculino que sejam violentos, basta alimentar elementos de subjetivação que proporcionem esse mesmo resultado. A partir disso, reflitamos em conjunto: qual é o papel social que até hoje produzimos em relação à masculinidade, senão o da violência? Aos meninos, presenteamo-los com bonecas e fogões, ou com carros e armas? Quando adolescentes, os estimulamos ao trabalho e ao lar, ou à “pegação” e ao uso de drogas, como o álcool?
Diante desse cenário, não é difícil compreender por que tantos jovens beiram ao extremismo e à violência. Em um mundo marcado pela era digital, e, consequentemente, pela difusão de ideias emancipatórias, não é à toa que sujeitos do gênero masculino entrem em colapso ao perceber que em vários contextos a realidade para a qual foram criados não corresponde aos ensinamentos absorvidos. Com o crescimento da agenda feminista e LGBT, muitos jovens simplesmente se viram castrados diante uma masculinidade nova, não violenta, e de uma postura feminina empoderada, não subserviente.
Por conseguinte, é a partir disso que encontramos a formação do discurso conservador sobre a “depravação” dos novos tempos e da necessidade do “resgate dos valores do passado”. Ao lado dos delitos comuns, multiplicam-se então uma série de crimes passionais e de separações mal resolvidas, e, com isso, acabamos quase que diariamente assistindo a tristes desfechos violentos, como o recente caso do jovem que matou a namorada com uma coleira de cachorro.
Logo, pelo contexto exposto, entende-se que as políticas públicas voltadas para o combate à violência precisam necessariamente observar as questões de gênero. O fato de termos uma quase hegemônica população carcerária masculina não é uma circunstância aleatória, tal como o comportamento agressivo masculino, que não é inato, mas é construído a partir de reproduções acríticas de sentido.
A maioria dos delitos praticados, sejam eles contra o patrimônio, contra a vida ou relacionados ao tráfico de drogas, têm como agentes sujeitos do gênero masculino, e é preciso pensar urgentemente por que essa relação se construiu ao longo do tempo, e quais são os fatores que a fazem se perpetuar diante da realidade conhecida.
Notadamente, não se está sugerindo que a responsabilidade da violência recaia exclusivamente sobre a cultura machista; tampouco se advoga um absoluto determinismo, no sentido de que todos os homens subjetivados por essa cultura irão praticar alguma forma de violência. Todavia, ratifica-se o entendimento de que, em uma sociedade que estimula a violência por meio do gênero, tratar as consequências da violência sem observar o discurso de gênero é, no mínimo, tratar das patologias destacadas de forma muito, muito simplificada.
Augusto Carlos de Menezes Beber é mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos e advogado.
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