Suposto surto de loucura temporária é tática utilizada para tentar inocentar casos de feminicídios
Violência contra a mulher é alvo de ação na Praia de Copacabana, Rio de Janeiro Foto: Mario Tama / Getty Images
Até a década de 1970 era comum absolver indivíduos que haviam matado suas mulheres ou namoradas por causa de ciúmes. Existia até um termo jurídico para isso: legítima defesa da honra. Muitos recorriam a essa tese durante o julgamento, porém nem todos tinham sucesso. Somente aqueles que podiam pagar bons advogados, especialistas em fazer o júri ficar com pena do homicida.
Hoje a tese utilizada pela defesa evoluiu. A mais corriqueira é argumentar que o matador estava surtado, passava por um estado de loucura temporária, o que muitas vezes é corroborado por atestados médicos. E existem jurados que ainda caem nessa história. Não resta dúvida que em alguns casos essa loucura temporária é real, mas só é possível acreditar nela se o homicida já tiver passado por surtos parecidos, sido internado ou estar sob tratamento com remédios antipsicóticos pesados. Se o sintoma aparece repentinamente, somente quando mata a mulher, é bom que o jurado fique desconfiado. Outro indício de que o indivíduo sabia o que estava fazendo é seu comportamento logo após o crime.
Hoje a tese utilizada pela defesa evoluiu. A mais corriqueira é argumentar que o matador estava surtado, passava por um estado de loucura temporária, o que muitas vezes é corroborado por atestados médicos. E existem jurados que ainda caem nessa história. Não resta dúvida que em alguns casos essa loucura temporária é real, mas só é possível acreditar nela se o homicida já tiver passado por surtos parecidos, sido internado ou estar sob tratamento com remédios antipsicóticos pesados. Se o sintoma aparece repentinamente, somente quando mata a mulher, é bom que o jurado fique desconfiado. Outro indício de que o indivíduo sabia o que estava fazendo é seu comportamento logo após o crime.
Tomemos três exemplos recentes, um ocorrido há poucos dias em Camboriú, Santa Catarina, outro a cerca de um mês na cidade de Santo André, São Paulo e por último um feminicídio ocorrido no início do ano na Espanha. Neles o comportamento adotado pelos matadores revela que logo após o crime eles estavam muito lúcidos.
O caso mais recente envolve o advogado Paulo de Carvalho Souza, dia 03 de abril. Ele é acusado de ter assassinado sua namorada Lucimara Stasiak e mantido o corpo escondido dentro do apartamento em que residiam por vários dias. O crime só foi descoberto porque alguns vizinhos estranharam quando viram o advogado levando para o imóvel muitos sacos de gelo. Testemunhas também contaram que Lucimara foi vista pela última vez 27 de março, quando houve uma discussão entre o casal.
Quando o corpo foi descoberto, Paulo se trancou na sacada e ficou 24 horas ameaçando suicídio, mas estranhamente não pulou, acabou se entregando. Segundo a polícia ele, assim como metade da classe média, tomava remédio para depressão, a doença do século. Lembrando que os outros milhões de pessoas deprimidas não matam ninguém.
O segundo episódio ocorreu em 18 de março, quando uma técnica de enfermagem de 21 anos, Engel Sofia Pironato foi morta pelo ex-namorado Lucas Alves Silva Santos. Depois de cometer o crime ele esvaziou a geladeira e guardou o corpo dentro. Tendo feito isso ficou andando pela cidade e só voltou ao local do crime a noite, quando pegou roupas e tentou se esconder na casa de um parente em São Paulo. Só não conseguiu o feito porque foi preso pela polícia quando estava em deslocamento.
Os dois casos tem vários pontos em comum. O mais gritante é que tentarem preservar os corpos no gelo para não atrair a polícia. O segundo é que logo após o crime estavam lúcidos para pensar numa estratégia para evitar a prisão. O que é o X da questão. Nenhum dos dois ignorava que se fossem pegos iriam para a cadeia.
O terceiro caso ocorreu na cidade de Zaragoza, Espanha no início do ano. A advogada espanhola Rebeca Santamalia Cancer, foi assassinada por José Javier Salvador Calvo, seu ex-cliente, com quem havia tido um caso.
O marido de Rebeca tinha dado queixa de seu desaparecimento. E através da irmã da vítima a polícia soube de seu relacionamento com Javier. No apartamento dele encontraram o corpo, mas não o criminoso. Ele foi localizado pela patrulha em um viaduto. Primeiro tentou fugir, mas acabou se suicidando, pulando de uma grande altura. Em seu corpo encontraram mais de quatro mil euros e nenhum documento. Ou seja, assim como os dois casos anteriores, ele não queria ser reconhecido e havia juntado dinheiro para desaparecer. E tinha seus motivos. Havia passado mais de quinze anos na cadeia por matar sua mulher. E sua advogada era Rebeca. Resumindo era um reincidente com medo de voltar para a cadeia se matou.
Ele tinha algum transtorno grave? Difícil dizer. É coisa para psiquiatras e psicólogos discutirem. O fato é que era um perigo, e no espaço de 16 anos matou duas mulheres com que se relacionava. E talvez tivesse matado outras se não ficasse tanto tempo preso.
O que há em comum entre os três casos? Além do óbvio, que é matarem suas companheiras, ou ex-companheiras, tiveram a capacidade de pensar numa estratégia para fugir do crime e não foram bem-sucedidos. Não duvidem que os dois homicidas que estão presos vão alegar que cometeram o crime por conta de um surto de psicose. E para algumas pessoas essa desculpa é suficiente para a absolvição ou uma pena leve. O mesmo tipo de pessoa que aceitava a desculpa da “legítima defesa da honra”.
É bom ressaltar que não estamos argumentando aqui que o indivíduo que comete feminicídio, e depois se entrega, seja menos culpado. Afinal matar alguém, seja por ciúmes ou por qualquer outro motivo banal, é crime grave, e o autor deve ser punido com todo rigor. A intenção do artigo é ajudar as pessoas a desconstruir uma defesa que com frequência é usada por matadores ciumentos.
*Guaracy Mingardi é ex-investigador da Polícia Civil de São Paulo, especialista em Segurança Pública, mestre pela Unicamp e doutor pela USP em ciência política. Mingardi desenvolve trabalhos sobre investigação policial como pesquisador da faculdade de Direito da Fundação Getulio Vargas e assessorou a Comissão Nacional da Verdade
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