Por Fernanda Orsomarzo
Quarta-feira, 10 de abril de 2019
Jovem, negra, mãe solo, baixa escolaridade, oriunda de extrato social vulnerável, provedora do lar. Presa por crime direta ou indiretamente relacionado ao tráfico, ocupante de posição coadjuvante na atividade ilícita, como transporte ou pequeno comércio. Esse é o perfil atual da mulher encarcerada no Brasil, segundo dados do último Relatório do Infopen Mulheres, de 2018.[1]
Talvez o mesmo da gestante que, em 2015, prestes a dar à luz e em meio a uma crise de abstinência, foi isolada numa solitária como castigo, onde, apesar dos gritos de socorro das presas em uma cela vizinha, somente dali saiu com o bebê já no colo, ainda ligado ao seu corpo pelo cordão umbilical. Atendida, voltou ao isolamento, enquanto o filho foi encaminhado ao abrigo.[2]
É bem provável, ainda, que Jéssica Monteiro também reúna as mesmas características descritas no primeiro parágrafo deste texto. Ré primária, em 2018, após entrar em trabalho de parto no dia seguinte à sua prisão por tráfico de drogas, deu à luz no hospital e voltou à cadeia. Nas fotos que circularam nos telejornais, o bebê, enrolado num fino cobertor, dormia sobre um colchão imundo, mal imaginando, no seu sono inocente, que em seus primeiros minutos de vida fora do útero não recebeu visitas de parentes na maternidade, mas jornalistas na minúscula cela de uma delegacia de polícia em São Paulo.[3]
As tragédias acima descritas, embora à época tenham ocupado algum espaço na mídia, a muitos não chocam. Ora, no país que ocupa a quinta posição no ranking entre aqueles que mais matam mulheres no mundo[4], a naturalização da realidade de opressão a que estão sujeitas, sobretudo quando se é negra e/ou oriunda de classes sociais economicamente pobres, é apenas uma das facetas do patriarcado secular que teima em manter suas raízes fincadas na sociedade brasileira, colonizando corpos e mentes. Tudo elevado ao infinito quando se trata de uma mulher presa – esta, ainda mais invisível, estigmatizada e esquecida.
E, porque sem resposta, novamente levanto o questionamento já formulado no artigo Mesmo que as correntes sejam diferentes, somos todas prisioneiras[5], escrito em coautoria com minha querida amiga Ana Carolina Bartolamei Ramos: “Como dar voz ao esquecimento? Quão surdos estamos – e será que é exatamente de surdez que se trata – quando nos tornamos uma sociedade que utiliza o cárcere como forma explícita de segregação social, sem que isso nos abale?”.
Dentre as inúmeras causas da surdez coletiva diante do grito dos excluídos, o delírio punitivista que acomete grande parcela da população é sintoma do fortalecimento do Estado neoliberal, mínimo e tímido na área social, mas máximo e implacável no campo penal. A fim de compensar sua absoluta ineficiência na formulação de políticas públicas de inclusão e cidadania, o Estado neoliberal não combate a pobreza, mas o pobre, utilizando-se do Direito Penal como instrumento de controle e descarte de corpos indesejáveis. Para as camadas que não se encaixam nos anseios do capital resta o isolamento, tanto pela marginalização social quanto pelo encarceramento em massa.
Nas palavras de Vera Regina Pereira de Andrade, “no senso comum do capitalismo globalizado sob a ideologia neoliberal (doravante CGN) domina uma leitura da criminalidade violenta de rua como sendo o grande inimigo causador da insegurança individual e coletiva, responsável pela arquitetura de uma sociedade tão encarceradora quanto encarcerada. O medo, que vira medo do crime, e a insegurança, que vira insegurança contra a criminalidade, aparecem, pois, como a base da grande demanda por segurança pública, cujo sistema se torna o mais hipertrofiado do CGN e acarreta a saturação punitiva das agências policial (civil e militar) e prisional”.[6]
Obviamente, o desejo por mais punição não alcança os altos extratos da sociedade, sendo direcionado às classes vulneráveis. Seja na elaboração da legislação penal (criminalização primária), que prevê penas mais severas às condutas cometidas em geral pelas parcelas mais pobres da população, como furto, roubo e tráfico de drogas, seja na atuação punitiva do Estado por meio de seus órgãos de controle (criminalização secundária), a seletividade é marca indelével do sistema penal brasileiro.
Raúl Zaffaroni explica: “(…) a muito limitada capacidade operativa das agências de criminalização secundária não têm outro recurso senão proceder sempre de modo seletivo. Desta maneira, elas estão incumbidas de decidir quem são as pessoas criminalizadas e, ao mesmo tempo, as vítimas protegidas”. [7]
E, como prova da seletividade, refletimos aqui sobre o caso Adriana Ancelmo, advogada e esposa do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, presa em 2016 sob a acusação da prática de crimes de associação criminosa, lavagem de dinheiro e corrupção. Mãe de uma criança, voltou à prisão domiciliar em 2018, por força de habeas corpus concedido pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes. A autorização do cumprimento da pena em sua residência era medida óbvia, legal e constitucional, mas não reconhecida a milhares de mães encarceradas que se encontravam nas mesmas condições de Adriana Ancelmo, à exceção da posição social.
Após o debate levantado pelo caso, o habeas corpus coletivo do Supremo Tribunal Federal (HC 143.641) confirmou a prisão domiciliar como um direito a todas as mulheres brasileiras. Todavia, como se vê, o direito evidente de Adriana Ancelmo não havia sido resguardado, até então, às presas que não detinham os mesmos privilégios da advogada. Esquecidas no cárcere, milhares de mulheres tiveram sua condição de mãe reconhecida pelo Estado somente após o episódio.
E assim, surdos diante do vazio do esquecimento sobre vidas que elegemos descartáveis – exterminadas rapidamente com um tiro de sniper –, tornamo-nos cegos e mudos. E, se não podemos ouvir o que foi esquecido, como enxergar o invisibilizado ou falar pelo que foi sufocado?
Estivéssemos vivenciando tempos de sanidade, certamente seria motivo de vergonha a uma sociedade que se diz democrática, fundada no respeito à dignidade da pessoa humana, a necessidade de edição de uma lei para proibir o uso de algemas durante o parto da mulher presa[8]. Mas não foi e não é. A obviedade precisou ser dita e escrita, já que, como um dia disse Bertolt Brecht, vivemos em tempos em que é necessário defender o óbvio.
Acaso fôssemos comprometidos com a efetivação da Constituição Federal, observaríamos a recente decisão do Supremo Tribunal Federal no HC 143.641/SP, que concedeu prisão domiciliar a mulheres grávidas e mães de crianças ou pessoas com deficiência[9]. Estaríamos dando cumprimento à lei 13.769/2018, que positivou no Código de Processo Penal o entendimento pacificado pelo Supremo Tribunal Federal (art. 318-A). Mas não estamos.[10] E o óbvio continua sendo julgado. E transformado em lei. E não cumprido.
Se no mundo real a lei fosse observada e a prisão utilizada como medida excepcionalíssima, presas provisórias não representariam quase metade da população carcerária feminina – segundo dados do Infopen 2018, somam 45% do total. Não seríamos o 4º país do mundo que mais encarcera mulheres, apresentando crescimento de 700% da massa carcerária feminina entre 2000 e 2016.
Volto ao texto escrito por mim e Ana Carolina: “Como compreender um sistema que joga na cadeia uma gestante como presa provisória? Como entender que crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, por mulheres primárias, sejam antecipadamente punidos em razão da genérica garantia da ordem pública? Como aceitar a prisão que desconsidera a situação peculiar da mulher encarcerada, silenciando qualquer resquício de humanidade em nossas instituições?”.
Ainda que insistamos em não ver, ouvir e compreender, elas existem –cada vez em maior número. E talvez o silêncio que ronda o julgamento legal e moral das mulheres encarceradas seja um dia ensurdecedor a uma sociedade que se diz democrática, plural e fundada na dignidade da pessoa humana. A reflexão acerca das desigualdades sociais, de gênero e raciais originadas do neoliberalismo deve ser provocada e incentivada, vencendo o discurso punitivista do senso comum, rumo à construção de uma sociedade mais livre, justa e igualitária. Uma coletividade que desconsidera as conquistas em torno dos direitos humanos é encarcerada por sua própria ignorância.
Fernanda Orsomarzo é Juíza de Direito no Estado do Paraná. Mestranda em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela PUC-PR. Membra da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e da Rede Justiça Pelos Direitos Humanos no Paraná (REJUDH-PR).
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