Nascida no final do século XIX, foi criada para ser esposa e mãe. Ousou fazer diferente. Ousou escolher o lugar que queria ocupar no mundo, agiu para isso
TARSILINHA DO AMARAL
15 ABR 2019
El País
O MASP inaugurou neste mês a mais ampla exposição de Tarsila do Amaral já realizada na história. A mais numerosa foi a da Pinacoteca de São Paulo, em 2008. Depois outras duas exposições potentes, realizadas pelo Art Institute of Chicago e pelo MoMA de Nova York, têm colocado a obra da artista brasileira em um novo patamar de reconhecimento global.
Há poucas semanas, após dois anos de pesquisa e negociações, um dos mais importantes museus do mundo, o MoMA, adquiriu para o seu acervo a obra “A Lua” (1928), que já está exposta na sua principal sala, ao lado de um importante quadro de Picasso.
O mercado estima que a venda tenha se dado com um valor em torno dos 20 milhões de dólare (quase 80 milhões de reais no câmbio do dia), algo inédito para a pintura brasileira e que fez aumentar exponencialmente o valor de toda a obra da artista. Com esta venda, Tarsila entrou no rol dos maiores pintores de todos os tempos. Estima-se que Abaporu, vendido em 1995 por 1,5 milhões de dólares, hoje possa valer mais de 100 milhões de dólares.
Como sua sobrinha-neta homônima, conheço e contemplo a obra de Tarsila desde muito pequena. Ao entrar na exposição montada com maestria pelo MASP, lembro da casa dela e das paredes das casas de meus familiares, que já foram decoradas com as peças, hoje valorizadas internacionalmente. Tarsila adorava presentear os parentes com seus trabalhos.
Mas muito além de rever estas cores e formas tão peculiares, além de rememorar tantas histórias íntimas envolvendo minha tia-avó, essas grandes exposições (e os olhares que tais mostras suscitam em torno da obra) me fazem rever a dimensão desta mulher no mundo.
É uma obviedade dizer que dos anos 20 para cá muita coisa mudou. Olhar a criação de qualquer artista sob as perspectivas de comportamento atualizadas para 2019 poderia revelar uma obra datada.
Tenho feito isso com Tarsila. E ao rever sua obra, entendo cada vez mais seu vanguardismo feito em voz baixa. Digo isso porque Tarsila era discreta. A partir da mais icônica de suas obras, Abaporu, Tarsila inspirou o manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade. Não o escreveu, nem o leu em voz alta no Theatro Municipal de São Paulo. Inspirou-o.
Em uma tela em branco, Tarsila escolheu pintar com cores que seus professores diziam “feias”, de mau gosto. Cores fortes, cheias de luz, do jeito que ela enxergava nas paisagens do interior do Brasil, seu habitat natural, as cores caipiras.
Em uma época na qual a pintura retratava majoritariamente personagens brancos, Tarsila criou “A Negra”, exposta no MoMA e agora no MASP com a devida importância afetiva que a personagem ali representada tinha para a artista.
A família pouco sabe sobre a mulher real retratada na obra, porém, no Álbum de viagens da artista, uma foto bastante semelhante a este quadro dá a dimensão dessa relação afetiva.
Ao longo da exposição no MoMA, conversei com diversos frequentadores da mostra e não posso esquecer um funcionário do museu, senhor negro americano, que sorriu ao dizer que a obra que ele mais tinha gostado era “A Negra”, porque se sentiu representado nela. Quantos personagens negros já ocuparam as paredes do MoMA?
Em “Operários”, Tarsila representou de forma crítica e direta a pirâmide da desigualdade social no Brasil desde sempre. Após uma viagem à então União Soviética, Tarsila foi presa por seu envolvimento com a esquerda e acusada de subversiva no Brasil dos anos 1932.
Tarsila era filha de aristocratas. Nascida no final do século XIX, foi criada para ser esposa e mãe. Ousou fazer diferente. Ousou escolher o lugar que queria ocupar no mundo, agiu para isso. Ousou escolher as cores caipiras, a despeito dos grandes mestres com quem estudou. Ousou divorciar-se do primeiro marido, se apaixonar e casar com o escritor Oswald de Andrade, ser abandonada por ele, e ousou ainda casar-se novamente com um homem vinte anos mais novo que ela.
Ousou criar o Abaporu para dar de presente a Oswald, seu marido na época - para mim, um autorretrato de uma mulher apaixonada. Depois do envolvimento dele com a jovem Pagu, o quadro foi pedido de volta por Tarsila no momento da separação do casal, em troca de um já valorizado quadro do pintor italiano De Chirico.
Tarsila ousou dizer publicamente que queria ser a pintora do Brasil. Não teve medo de dizer isso em Paris, a cidade onde passou grande parte dos anos 20, que era a capital do mundo artístico na época.
A despeito de todos os papéis pensados para uma mulher filha de fazendeiros nascida em 1886 na cidade de Capivari, interior de São Paulo, a exposição “Tarsila Popular” em cartaz no MASP mostra que ela conquistou o lugar que desejou para sua existência. Por tudo isso, Tarsila inspira.
Tarsilinha do Amaral é advogada, sobrinha-neta da artista e representante do espólio de Tarsila do Amaral
Há poucas semanas, após dois anos de pesquisa e negociações, um dos mais importantes museus do mundo, o MoMA, adquiriu para o seu acervo a obra “A Lua” (1928), que já está exposta na sua principal sala, ao lado de um importante quadro de Picasso.
O mercado estima que a venda tenha se dado com um valor em torno dos 20 milhões de dólare (quase 80 milhões de reais no câmbio do dia), algo inédito para a pintura brasileira e que fez aumentar exponencialmente o valor de toda a obra da artista. Com esta venda, Tarsila entrou no rol dos maiores pintores de todos os tempos. Estima-se que Abaporu, vendido em 1995 por 1,5 milhões de dólares, hoje possa valer mais de 100 milhões de dólares.
Como sua sobrinha-neta homônima, conheço e contemplo a obra de Tarsila desde muito pequena. Ao entrar na exposição montada com maestria pelo MASP, lembro da casa dela e das paredes das casas de meus familiares, que já foram decoradas com as peças, hoje valorizadas internacionalmente. Tarsila adorava presentear os parentes com seus trabalhos.
Mas muito além de rever estas cores e formas tão peculiares, além de rememorar tantas histórias íntimas envolvendo minha tia-avó, essas grandes exposições (e os olhares que tais mostras suscitam em torno da obra) me fazem rever a dimensão desta mulher no mundo.
É uma obviedade dizer que dos anos 20 para cá muita coisa mudou. Olhar a criação de qualquer artista sob as perspectivas de comportamento atualizadas para 2019 poderia revelar uma obra datada.
Tenho feito isso com Tarsila. E ao rever sua obra, entendo cada vez mais seu vanguardismo feito em voz baixa. Digo isso porque Tarsila era discreta. A partir da mais icônica de suas obras, Abaporu, Tarsila inspirou o manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade. Não o escreveu, nem o leu em voz alta no Theatro Municipal de São Paulo. Inspirou-o.
Em uma tela em branco, Tarsila escolheu pintar com cores que seus professores diziam “feias”, de mau gosto. Cores fortes, cheias de luz, do jeito que ela enxergava nas paisagens do interior do Brasil, seu habitat natural, as cores caipiras.
Em uma época na qual a pintura retratava majoritariamente personagens brancos, Tarsila criou “A Negra”, exposta no MoMA e agora no MASP com a devida importância afetiva que a personagem ali representada tinha para a artista.
A família pouco sabe sobre a mulher real retratada na obra, porém, no Álbum de viagens da artista, uma foto bastante semelhante a este quadro dá a dimensão dessa relação afetiva.
Ao longo da exposição no MoMA, conversei com diversos frequentadores da mostra e não posso esquecer um funcionário do museu, senhor negro americano, que sorriu ao dizer que a obra que ele mais tinha gostado era “A Negra”, porque se sentiu representado nela. Quantos personagens negros já ocuparam as paredes do MoMA?
Em “Operários”, Tarsila representou de forma crítica e direta a pirâmide da desigualdade social no Brasil desde sempre. Após uma viagem à então União Soviética, Tarsila foi presa por seu envolvimento com a esquerda e acusada de subversiva no Brasil dos anos 1932.
Tarsila era filha de aristocratas. Nascida no final do século XIX, foi criada para ser esposa e mãe. Ousou fazer diferente. Ousou escolher o lugar que queria ocupar no mundo, agiu para isso. Ousou escolher as cores caipiras, a despeito dos grandes mestres com quem estudou. Ousou divorciar-se do primeiro marido, se apaixonar e casar com o escritor Oswald de Andrade, ser abandonada por ele, e ousou ainda casar-se novamente com um homem vinte anos mais novo que ela.
Ousou criar o Abaporu para dar de presente a Oswald, seu marido na época - para mim, um autorretrato de uma mulher apaixonada. Depois do envolvimento dele com a jovem Pagu, o quadro foi pedido de volta por Tarsila no momento da separação do casal, em troca de um já valorizado quadro do pintor italiano De Chirico.
Tarsila ousou dizer publicamente que queria ser a pintora do Brasil. Não teve medo de dizer isso em Paris, a cidade onde passou grande parte dos anos 20, que era a capital do mundo artístico na época.
A despeito de todos os papéis pensados para uma mulher filha de fazendeiros nascida em 1886 na cidade de Capivari, interior de São Paulo, a exposição “Tarsila Popular” em cartaz no MASP mostra que ela conquistou o lugar que desejou para sua existência. Por tudo isso, Tarsila inspira.
Tarsilinha do Amaral é advogada, sobrinha-neta da artista e representante do espólio de Tarsila do Amaral
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