2 de abril de 2019
Normalmente, toda pretensão de direito material é transmissível, ainda que objeto de um processo judicial em curso.
Assim, é possível haver alteração subjetiva da demanda, em um dos polos, durante a tramitação do processo. Essa situação pode ser verificada por ato inter vivos ou causa mortis.
O cessionário sub-rogado ou o sucessor adquire, pois, ulterior legitimação ad causam, sempre que for possível à luz do direito material.
Quanto à modificação das partes por ato inter vivos, inúmeras são as regras específicas, como, por exemplo, a previsão do artigo 109, parágrafo 1º, do Código de Processo Civil, no âmbito da alienação da coisa litigiosa.
Já no que concerne à transmissão da pretensão mortis causa, torna-se necessário apenas que haja a respectiva habilitação, a teor do artigo 687 do diploma processual: “A habilitação ocorre quando, por falecimento de qualquer das partes, os interessados houverem de suceder-lhe no processo”.
Já no que concerne à transmissão da pretensão mortis causa, torna-se necessário apenas que haja a respectiva habilitação, a teor do artigo 687 do diploma processual: “A habilitação ocorre quando, por falecimento de qualquer das partes, os interessados houverem de suceder-lhe no processo”.
Não obstante, há hipóteses de pretensões que não se transmitem, mesmo depois de já ter sido ajuizada a demanda. Geralmente, as denominadas “ações intransmissíveis” ou “não hereditárias” são aquelas referentes ao estado da pessoa, como, por exemplo, ação de divórcio, ação de anulação de casamento, ação de adoção, ação de reconhecimento da paternidade.
Falecido o autor, por ser personalíssima a pretensão deduzida, não se transmite ela aos sucessores do de cujus.
Importante precedente da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao ensejo do julgamento do Recurso Especial 832.330, relatado pelo ministro Castro Filho, concluiu que:
“O direito de reconhecer voluntariamente a prole é personalíssimo, e, portanto, intransmissível aos herdeiros, não existindo no direito positivo pátrio norma que atribua efeitos jurídicos ao ato pelo qual aqueles reconhecem a condição de irmão, se o pai não o fez em vida. Falecido o suposto genitor sem manifestação expressa acerca da existência de filho extra matrimonium, a pretensão de inclusão do seu nome no registro de nascimento poderá ser deduzida apenas na via judicial por meio de ação investigatória de paternidade”.
Em recentíssimo julgamento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça acabou de enfrentar esta importante questão, em acórdão com voto condutor do ministro Marco Aurélio Bellizze, no qual assentado que, extinta a obrigação alimentar em decorrência da morte do alimentando, a genitora não detém legitimidade ativa para prosseguir na execução de alimentos vencidos, seja na condição de herdeira, seja em nome próprio, por sub-rogação.
Infere-se do caso concreto que, após o falecimento do filho, ocorrido em 2013, durante a execução de alimentos iniciada em 2008, o juízo de primeiro grau determinou o prosseguimento da ação pela mãe, que se habilitou em nome próprio. Apesar de considerar que a morte do alimentando extingue a obrigação de prestar alimentos, o Tribunal de Justiça do Maranhão entendeu que as parcelas já constituídas deveriam ser transmitidas aos herdeiros, admitindo-se assim a legitimidade da herdeira e consequente continuidade da execução pela genitora.
Interposto recurso ao Superior Tribunal de Justiça, o devedor dos alimentos argumentou que a continuação da execução ofende o ordenamento jurídico, em particular, o artigo 1.700 c.c. o artigo 1.792 do Código Civil, que contemplam a possibilidade de transmissão da obrigação alimentar aos herdeiros do devedor, nos limites da herança, mas inexiste previsão para a hipótese de o direito aos alimentos, de natureza personalíssima, ser transferido a outrem.
Para o relator do recurso especial, ministro Marco Aurélio Bellizze, a compreensão do acórdão recorrido “se aparta da natureza jurídica do direito aos alimentos, com destaque para o seu caráter personalíssimo — viés que não se altera, independentemente de os alimentos serem classificados como atuais, pretéritos, vencidos ou vincendos, e do qual decorre a própria intransmissibilidade do direito em questão —, bem como de sua finalidade precípua, consistente em conferir àquele que os recebe a própria subsistência, como corolário do princípio da dignidade humana”.
Em seu substancioso voto, o ministro explicou que os alimentos, concebidos como direito da personalidade, integram o patrimônio moral do alimentando, e não o seu patrimônio econômico, ainda que possam ser apreciáveis economicamente. Salientou, ainda, que:
“Embora tênue, essa distinção bem evidencia o desacerto da comum assertiva de que os alimentos, porque vencidos, incorporariam ao patrimônio (econômico) do alimentando e, por isso, passariam a ser transmissíveis a terceiros”. Nesse sentido, o relator lembrou que o artigo 1.707 do Código Civil veda a cessão do crédito alimentar a terceiros: “ainda que a prestação alimentícia se encontre vencida e seja apreciável economicamente, o respectivo direito subjetivo continua a integrar o patrimônio moral do alimentando, remanescendo absolutamente inalterada a sua finalidade precípua de propiciar a subsistência deste (exclusivamente), conferindo-lhe meios materiais para tanto”.
O ministro Bellizze asseverou, outrossim, que, com a morte do alimentando, restou exaurida a finalidade precípua dos alimentos, qual seja a de proporcionar subsistência ao seu credor, de conformidade com precedente da própria 3ª Turma, no qual, em razão da extinção da obrigação alimentar — pela maioridade do alimentando, que havia concluído o curso superior e passaria a residir com o alimentante —, foi reconhecida a ilegitimidade da genitora para prosseguir na execução dos alimentos vencidos, os quais teriam sido por ela suportados.
Todavia, o ministro relator Marco Aurélio Bellizze ressalvou que deve ser reconhecida a possibilidade de a genitora buscar em nome próprio o ressarcimento dos gastos com a manutenção do filho falecido e que eram de responsabilidade do alimentante inadimplente, evitando assim que ele se beneficie da extinção da obrigação alimentar e obtenha enriquecimento sem causa.
Aduza-se que esse mesmo fenômeno ocorre no terreno de alguns direitos absolutos, referentes a usufruto, uso, habitação, nos quais também não se verifica a transmissibilidade da pretensão deduzida em juízo.
É igualmente o que ocorre nas ações de prestação de fato pessoal, como o mandato (cf. Alcides de Mendonça Lima, Intransmissibilidade da ação, Dicionário do Código de Processo Civil brasileiro, São Paulo, Ed. RT, 1986, pág. 339).
Em todos estes casos, falecido o demandante na pendência do processo, o juiz deverá proferir sentença sem resolução do mérito por ausência superveniente de pressuposto processual subjetivo, visto que impossível a sucessão do autor no polo ativo.
Importa ainda anotar, à guisa de mera ilustração, que existem ações híbridas, cuja titularidade para o seu respectivo ajuizamento é exclusiva de determinada pessoa. No entanto, uma vez ajuizada a ação, com a morte do autor, os seus sucessores podem habilitar-se como legitimados ativos. É a hipótese bem clara prevista no artigo 1.601 do Código Civil, que atribui exclusivamente ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher. No entanto, dispõe o parágrafo único desta regra legal que, havendo resistência oposta pelo réu, os herdeiros do demandante “têm direito de prosseguir na ação”. Eis aí uma situação rara que bem diferencia o “direito de ação” do “direito de demandar”.
José Rogério Cruz e Tucci é advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.
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