Falta controle em hotéis e pousadas
Estabelecimentos facilitam entrada de garotas sem documentos. Em Recife e Salvador, recepcionista e mensageiro agenciam meninas para os hóspedes
Ainda no elevador do hotel 4 estrelas, na praia de Boa Viagem, em Recife, o hóspede recém chegado lança a pergunta: “Onde ficam as meninas?”. De pronto, o mensageiro, um solícito senhor de uns 70 anos, se apressa para garantir bons préstimos. Dispunha de uma variedade de contatos, a escolher. Combinam a conversa para logo mais no saguão, a fim de acertar os detalhes. Tempo para ajustar a microcâmera, de modo a não perder os detalhes e a naturalidade da negociação.
Albari Rosa/Gazeta do Povo
Adolescente entra em hotel de Salvador, depois de ter sido agenciada pelo recepcionista para dois supostos clientes
Um país a mercê do turismo predatório
Copa do Mundo trará 500 mil turistas estrangeiros, entre eles muitos pornoturistas. Infância está vulnerável à exploração nas cidades-sedes
Pornoturistas são operários em seus países
O pornoturista chega com olhar cobiçoso, sem antes mirar-se no espelho da consciência. Suas razões estão fundadas numa lógica muito particular, ao imaginar-se num paraíso de sexo fácil. O típico turista sexual acorda por volta das 10 horas e vai à praia ciente de que lá encontrará garotas disponíveis. No fim da tarde, volta com uma delas ao hotel, sai com ela para jantar por volta das 20 ou 21 horas e dali emenda a noitada. Os que não encontram companhia já sabem os lugares onde encontrá-las à noite. Seja Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Fortaleza ou Natal, cada cidade tem seus pontos propícios para o pornoturista.
A maioria dos pornoturistas vem da Itália, Alemanha, Espanha e Estados Unidos. São, em geral, homens com idades entre 30 e 50 anos, de classe operária ou média baixa, que aproveitam as férias para uma temporada de orgia a baixo custo. Já não é comum os voos charter lotados com esses turistas, mas ainda há disponíveis em alguns países da Europa pacotes que incluem a promessa de uma garota de programa à disposição no Brasil.
O tempo de umas férias não permite ao estrangeiro itinerante ter relações prolongadas, daí a opção por uma relação profissionalizada. Jactam-se de um status de importância, embora não tenham perfil para tanto. São, em geral, operários em seus países. “É o tipo de pessoa que junta 3 mil euros o ano todo pra passar uma semana aqui. Traz 3 mil euros e, multiplicado por duas vezes e meia (diferença do câmbio com o real), vai estar por baixo com 7 mil reais pra gastar em uma semana. “Quer dizer, tem mil reais para gastar por dia. Dá uma pinta de rico”, diz um taxista habituado a transportar turistas do gênero em Fortaleza.
Serviço
Esta série de reportagens, que começa hoje e se estende até quinta-feira, foi produzida a partir do projeto vencedor no 6º Concurso Tim Lopes de Jornalismo Investigativo.
“Hoje, por ser sábado, tenho que ligar pras meninas pra ver se elas estão em casa”, avisa o mensageiro no saguão. “Nesse prédio tem uma”, diz saindo à porta para apontar à esquerda. Remexe a carteira em busca do papel com o número anotado. “Agora, se for homem que atender, passa pra mim porque deve ser parente. É porque não é prostituta, de cabaré. São meninas que moram com a família, estudam, trabalham e saem com o hóspede se a gente chamar”, esclarece.
Liga do celular do hóspede. “Tudo bem minha filha? Olha, eu tô com duas pessoas ilustres aqui no hotel, tão precisando de uma garotinha pra fazer uma massagem”, diz. “Olha, aquela menina, será que ela tá em casa, a tua amiga? Então vamos fazer o seguinte, eu vou passar o telefone pra ele. Eu já falei pra ele o cachezinho de vocês. É gente da melhor qualidade”, diz. “Essas duas, quando vêm, passam umas três horas, quatro horas, o tempo que vocês aguentarem”. No hotel não haveria problema, ele iria garantir o acesso da menina.
Sem documentos
Há sempre um discurso pronto e uma identidade para atestar a maioridade, ainda que a aparência as desminta. O documento, em geral falso, é mais para evitar aborrecimentos com a polícia do que para garantir a entrada no hotel. Uma adolescente explica as facilidades para entrar no mesmo hotel em que o mensageiro faz o agenciamento. “Sei onde é, já fiquei lá, não paga taxa não”, afirma ao descrever o interior do estabelecimento. “Já fiquei lá uma semana com um italiano”.
“A gente saía pra jantar, ele comprava coisas pra mim no shopping. Quando foi embora, me deu 800 reais”, diz. O italiano tinha em torno de 50 anos e até cogitou levá-la para a Itália. “Na época eu não tinha documento”, revela. Disse que tinha perdido a identidade e assim teve a entrada facilitada no hotel. Segundo ela, basta colocar uma roupa mais discreta, como calça jeans e blusa pouco decotada. Por isso, sempre carrega numa sacola algumas peças próprias para essas ocasiões.
As mesmas facilidades são encontradas em outros hotéis da praia de Boa Viagem. Uma adolescente que afirma ter 19 anos, mas cuja aparência revela não ter chegado aos 17, diz já ter frequentado hotéis aparentemente rigorosos na exigência de documentos das acompanhantes. Dias antes da entrevista, acompanhou um cliente a um hotel. “Pediram a identidade, eu disse que eu me esqueci. Aí me deixaram entrar.”
Mesmos vícios
O dono de uma pousada na região central de Recife, um alemão, faz um discurso moralista ao ser consultado sobre a eventual entrada de uma garota de programa. Não sem razão. A pousada havia sido fechada anos antes devido à presença de menores de idade nos quartos. Reabriu com outro nome, mas com os mesmos vícios. O hóspede recebe uma chave da entrada, já que após as 22 horas ninguém permanece na portaria. Pode-se entrar e sair com quem quiser, sem restrições. O mesmo acontece em pousadas onde a equipe da Gazeta do Povo se hospedou em Natal e Salvador.
Loira ou morena?
Em Salvador, o recepcionista de um hotel atende aos hóspedes que buscam sexo proibido. Após nove minutos de tentativa, conseguiu falar com uma agenciadora. “Ela em si não faz programa. É aquela mulher que agencia as meninas. Ela tem morena, tem loira, tem alta, tem baixa”, diz. E justifica os R$ 200 cobrados pelo programa. “Pra entrar numa boate, o senhor paga quase R$ 70, pra tirar a menina paga R$ 100 à boate e mais 250 pra menina. Essa menina daqui não está em boate, ela vem aqui já, por isso cobra esse valor”, explica.
“Se quiser aguardar, tem outra também”, avisa. “Essas meninas vêm e oferecem o telefone. Às vezes já saíram dessas casas [boates], a gente pega e fica, e quando aparece alguém querendo, a gente passa”, observa. O recepcionista também tranquiliza o hóspede sobre a entrada. “Aqui, não vou cobrar nada de vocês. Até porque se eu fosse cobrar, ia ficar caro pra vocês”.
Rave e Lua, mãe e filha, são garotas de programa e habituais frequentadoras de hotéis em Salvador. “Em hotel, eles [turistas] pedem muitas garotas. Se não conseguir no próprio hotel, eles vêm à Barra e conseguem por conta própria, chegam lá e pagam a hospedagem da garota. Mas se for indicado, eles dão uma gorjetazinha e tudo certo”, explica Rave. Foi assim que Lua, aos 17 anos, ficou uma semana num hotel de luxo com um prefeito do interior da Bahia. “Se ele é o homem do pacote, vai ter problema? Não vai ter problema nenhum”, observa Rave.
Entrada livre
Entrar com adolescente num hotel de Fortaleza não é tão difícil como deveria. “Tive um cliente da Itália, tava hospedado num hotel na beira-mar, um hotel cinco estrelas. Passei três meses com ele. Eu ia pro hotel uma vez na semana, duas vezes na semana. Ele comprou minha roupa completa de mulher. E me deu mil reais”, diz Leonardo, michê de 18 anos, à época com 16. “Era mais procurado por turista, tinha mais cliente estrangeiro do que daqui”, conta. Ele passava a semana nas ruas do bairro onde mora, na periferia, e no fim de semana fazia ponto na Praia de Iracema.
A três quadras da praia mais famosa de Fortaleza, na Rua Joaquim Alves, garotas de programa assediam os hóspedes no saguão de um hotel de padrão médio. “Eu posso subir no quarto, os meninos me conhecem”, tranquiliza o turista. “Eu fico por aqui (no saguão), ou então quando alguém quer, eles me ligam, porque eles têm meu número”, diz. Costuma ficar no hotel até as 22 horas, depois vai para uma boate frequentada por turistas, a duas quadras da Praia de Iracema. “Um lugar de turismo sexual”, informou um dia antes um guia informal que aborda os turistas no calçadão da Avenida Beira-Mar.
No Rio de Janeiro, as garotas de programa sugerem três hotéis em Copacabana. Um deles já foi alvo de investigação da Delegacia da Criança e Adolescente Vítima (Decav), mas continua a franquear a entrada de menores de idade. Em Natal, houve um período em que o dono de uma pousada só hospedava homens solteiros. “As famílias só davam problema e reclamavam quando eles [os turistas] traziam garotas de programa”, explica. Foi assim que o negócio prosperou, a quadra e meia da praia de Ponta Negra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário