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domingo, 30 de setembro de 2012


Pornoturismo dá visibilidade a michês

Mimetização do turismo sexual fez florescer o fenômeno dos garotos de programa adolescentes em cidades-sede da Copa de 2014
Leonardo recém-contava 13 anos e acreditava ter apenas dois caminhos para escapar da miséria. Amigos falavam de um mundo de possibilidades, abrindo os olhos para o sem-fim de coisas belas e sedutoras às quais nunca tivera acesso. Notou, por comparação, que não fora beneficiado com a melhor das vidas. Apresentaram-lhe então os escapes às privações. Poderia ser avião do narcotráfico, e submeter-se a todos os riscos inerentes à atividade, ou viver o glamour das noites de Fortaleza, fazendo a vez de acompanhante de turistas estrangeiros. Nesses termos foram postas as possibilidades.
Não foi difícil pesar as coisas, e a madrugada passou a encontrá-lo vagando pela orla da Praia de Iracema. Leonardo virou personagem de um fenômeno ainda invisível na orla de cidades com papel central nos destinos turísticos brasileiros vinculados à diversidade cultural e à beleza cênica de suas paisagens naturais. Vê-lo com um homem mais velho não causa às pessoas a mesma estranheza do que se no lugar dele estivesse uma menina de igual idade. Assim, a presença dos michês em Fortaleza, e de resto em outras cidades litorâneas, passa indiferente aos olhos leigos que os veem.
Garoto frequenta hotéis desde os 13
Aos 16 anos, Leonardo passou uma semana trancado com turistas em um motel de Fortaleza. “Fui na segunda-feira, retornei no sábado. Descansei em casa, minha mãe preocupada, querendo conversar. Eu disse que não tinha tempo”, relata. Acordou domingo à tarde, dor no corpo, febre alta, espirrando sangue. “Minha gripe parecia incurável, devido ao tempo que passei cheirando cocaína. A minha cartilagem pensei que não existia mais.”
Passava a semana nas esquinas do bairro onde mora, na periferia de Fortaleza, e no fim de semana fazia pista na Avenida Beira-Mar. “Era mais procurado por turista, tinha mais cliente estrangeiro”, conta Leonardo. “Tive um cliente da Itália, tava hospedado num hotel na beira-mar, um hotel cinco estrelas. Passei três meses com ele. Eu ia pro hotel uma vez na semana, duas vezes na semana. Ele comprou minha roupa completa de mulher. E me deu mil reais.”
Amigos o levaram para a prostituição aos 13 anos. Começou a faturar. “Esse dinheiro não servia pra nada, porque eu gastava, me drogava direto. Se ganhasse 40 reais no programa, pegava em cocaína e cheirava logo tudo, esperava outro programa, fazia mais 40, comprava bebida, comprava cigarro, comprava mais cocaína. Isso até às 7 horas, quando ia pra casa descansar.”
“Eu chegava na esquina às 8 horas, voltava pra casa às 7 horas da manhã. Quando a esquina dava muito dinheiro, passava três dias direto. Arranjava uma casa de amigos, dava uma pequena quantia de 40, 20 reais, pra passar o dia todinho. A gente curtia, chamava mais gente. Se divertia bastante. Aí, de noite, dava 8 horas, com a mesma roupa, a gente vinha pra esquina pra não voltar pra casa, com medo dos pais.”
Aos 16 anos, saiu de casa e voltou três semanas depois. Dormia na rua. “Eu tava muito afundado na esquina, não queria saber de mais nada. Foi quando comecei a ficar desinteressado na escola, comecei a tirar notas baixas, isso na sétima série”. A mãe notou. Ele buscava dissimular. O pai batia às vezes.
A mãe não sabia dos michês, só desconfiava ser gay. Ele dizia estar trabalhando, assim justificava o dinheiro. Comprou roupa de mulher. Queria ser travesti. Nas festas de fim de ano de 2010, avisada por uma vizinha, a mãe o encontrou na esquina do bairro. Deu as recomendações de praxe. Chamou o pai, bêbado àquela altura. “Quando meu pai viu minha mãe me abraçando, descobriu na hora.” Não gostou, mas não se aproximou.
Foi curtir a virada do ano na Praia de Iracema. De repente, teve a peruca arrancada. Um dos agressores exibia como arma uma garrafa quebrada. Leonardo improvisou arma idêntica e foi para cima. Rasgou a camisa do oponente, deixando uma risca na pele. O outro devolveu a peruca. Ao se retirar, o agressor avançou. Leonardo o agarrou e bateu com a cabeça dele no poste. Verteu sangue. A roda se abriu. Todos recuaram. Pegou a peruca e saiu em disparada.
Sentiu ainda outras vezes o refluxo da intolerância até que, em 2011, foi abordado por educadores de rua da Rede Aquarela, o programa de busca ativa da prefeitura de Fortaleza. Incluído no Projeto ViraVida, do Sesi, largou as drogas e a prostituição. Em dezembro deste ano termina o curso profissionalizante. “O ViraVida virou mesmo a minha vida.” (MK)
Serviço
O projeto que deu origem a esta reportagem, iniciada no domingo e que segue até quinta-feira, foi vencedor da Categoria Temática Especial do 6º Concurso Tim Lopes de Jornalismo investigativo, realizado pela Andi e Childhood Brasil (Instituto WCF), com apoio do Unicef, da OIT, Fenaj e Abraji.
Uma ironia para a cidade cuja publicidade se reporta a ela como mulher, num derradeiro recurso para fomentar o turismo pela sedução. Não faz muito, folhetos promocionais ainda evocavam o imaginário da “loira desposada do sol”, batismo dado no século 19 pelo poeta Francisco de Paula Ney. O ethos feminino de Fortaleza varou séculos e ajudou a forjar sua imagem pela propaganda turística, não sem algum efeito colateral. O turismo sexual nunca esteve tão forte em Fortaleza, avalia a socióloga Glória Diógenes. A afirmação não parte de algum achismo.
O turismo sexual se mimetizou, tomou os hábitos, o colorido e a estrutura do turismo convencional, atesta a autora do livro Os sete sentimentos capitais: exploração sexual comercial de crianças e adolescentes. Essa mimetização se retrata também no florescer desse fenômeno dos michês. Eles são muitos, pelo menos 150, na contagem de Cauê, outro garoto de programa que começou na atividade aos 14 anos por motivos idênticos aos de Leonardo. Não entra nessa conta – salienta Cauê – os travestis adultos e adolescentes.
Em Natal
Os michês começam a ganhar visibilidade também em Natal, devido à grande procura de seus serviços pelos turistas estrangeiros. A conselheira tutelar Thaysa Rodrigues de Oliveira tem notado um número crescente de casos envolvendo meninos na exploração sexual, sobretudo na orla. Foram cinco denúncias do gênero pelo Disque 100 só neste ano: dois meninos de 13 anos, dois de 14 e um de 15. Um bar perto da Orla de Ponta Negra, que pertence a um francês, faz o agenciamento dos garotos. Eles estão presentes ainda em outro em bar, de um brasileiro.
Menino gasta R$ 600 por mês em publicidade
Cauê, 18 anos, sonha em chegar à velhice com a conta cheia de dinheiro. Como? “Com bastante sexo”, afirma no único momento de descontração em uma hora de entrevista. Profissional do sexo desde os 14, concluiu por experiência própria que muitos turistas vêm a Fortaleza mais em busca de sexo do que de praia. Entre os clientes predominam franceses, italianos e espanhóis. A maioria acima da meia idade. Chegam até ele em abordagens no calçadão à beira-mar ou por meio de anúncios em jornal e na internet.
Cauê começou a oferecer seus serviços em peças publicitárias aos 15 anos, com o CPF emprestado de um amigo adulto. Atualmente, gasta R$ 40 a cada três dias em anúncios em um grande jornal do Nordeste, somando R$ 400 por mês, e paga mensalidade de R$ 200 num site especializado. Desde os 14, já foi a várias orgias em casas e apartamentos alugados por turistas para essa finalidade em Fortaleza. São dias de muita bebida, droga e sexo. Vários turistas e garotos e garotas de programa compartilham o mesmo ambiente. A última festa foi há dois meses.
A pouca idade nunca foi restrição para que acompanhasse turistas em hotéis. Entrou em dezenas deles. Foi barrado uma única vez. Às vezes, Cauê leva turistas ao apartamento que divide com um amigo no Centro de Fortaleza. É uma forma de agradar ao cliente porque a concorrência é grande. Há pelo menos 150 michês em Fortaleza, fora os travestis. O movimento de turistas é maior na alta estação, em julho, dezembro e janeiro. Costumam ficar sentados em grupos de até três michês à beira-mar, à espera de clientes.
“Quem entra nessa vida nunca sai. Um dia você vai dizer que vai sair. Arranja trabalho de babá ou assalariado, mas um dia vai ver seu filho com fome dentro de casa, porque não vai dar dinheiro nem pra comer. Então você vai sair pra rua. Por isso, nunca a pessoa deixa de fazer”, analisa. Cauê sustenta sua tese na própria vivência e no que vê nas ruas. Conhece um michê de 39 anos e outro de 55, que começou no ofício aos 14. Nenhum deles, no entanto, conseguiu a vida estável com que sonha Cauê. 
* Os nomes são fictícios.

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