Pós-parto, ou a queima de arquivo
ISABEL CLEMENTE
Foi depois de ler o ótimo post de um dos nossos “Homens de segunda” Alexandre Medeiros que eu virei para Martha Mendonça e comentei.]
- Foi meu marido também quem deu os primeiros banhos nas meninas nesses primeiros dias.
- O pai das crianças também. Ele tem uma mão grande, segurava o bebê na maior facilidade.
- Pois é, tem isso, a facilidade. Ele tinha muito jeito e daí eu ficava filmando, fotografando…aliás, não apareço nas fotos!
- Nem eu.
- Nesse período, se eu for buscar, praticamente não existo.
- Duas. Eu nasci depois disso.
- Nem queria aparecer. Tava sempre com cara de acabada, amamentando, sugada, olheiras no pé. Fugia das fotos.
- Total. Rolou uma queima de arquivo desse período.
Gargalhadas depois, decidimos compartilhar a história. Hoje eu vejo, no álbum das minhas filhas, que elas têm muitas fotos desses primeiros dias. Uma enxurrada de foto. De licença, eu ainda me dava ao trabalho de ir na loja revelar (coisa que nunca mais aconteceu). Fotos minha? Quase nada. Inexisto. Pensando bem, encontrei uma comigo, indo para a primeira consulta ao pediatra, um momento solene de reencontro com a sociedade.
Os dias pós-partos são realmente duros. Passe você por uma cesárea ou parto normal, poderá estar sujeita a inchaços (depois do segundo parto, experimentei pela primeira vez na vida inchaço nos pés) e noites em claro. Gorda ou magra, a gente se sente muito cansada (e meio acabada, vai). Encantada com tudo, feliz, radiante, mas cansada. Tudo parece mágico, doce e belo, mas exaustivo.
Lembro bem que, em determinado momento, propus a mim mesma que tentaria andar arrumadinha em casa. Bani trapos e botei em uso roupas que eu usaria para sair. Por que não? Minha perspectiva era ficar cinco meses em casa por conta das filhas e praticamente passeando pouco! Porque com primeiro filho a gente fica cheio de paranoia. Ninguém pode tocar, beijar, pegar. Ei, respira longe, por favor? Cigarro? Nem pensar! Shopping? Só nos horários vazios. Se incomoda de passar um alcool gel nas mãos? Felizmente, nossos bebês sobrevivem.
Naquele tempo, eu até fazia mais as unhas do que hoje em dia, ora veja só. Mas o tempo passou, o cansaço acalmou, o inchaço diminuiu, os quilos extras se foram enquanto eu admirava aquele pequeno ser que engordava a olhos vistos, a ponto de me dar uma tendinite logo nos primeiros meses de vida. Quem aguenta, de uma hora para outra, dez quilos no braço cujas articulações estão afrouxadas ainda pelo hormônio da amamentação? Aos poucos, eu voltava a aparecer nas fotos.
No segundo filho, a mesma sensação de cansaço, com menos paranoia. Uma hora eu volto ao normal, a barriga some, o inchaço diminui e você diz ok, pode respirar no mesmo quarto da minha filha, só não espirra em cima porque aí não dá, e se não tiver feito nenhuma porcaria, pode até tocá-la com suas mãos, ajuda na imunidade. Chupeta caiu no chão? Passa uma água. Mamadeira bem lavada já não precisa mais ser fervida. A gente volta a acreditar que o bebê dormindo continua respirando, ainda que a gente não vigie, e espera o choro embalar para decidir se vale a pena levantar no primeiro unhé.
Só depois de tanta autocrítica é que dá para se arrepender da queima de arquivo. Deveria ter me fotografado mais, amamentando, dando banho, com um sorriso feliz no meio da cara de fim de mundo, fazendo aquilo tudo que eu gostava de fazer. Devia ter me filmado no escuro do quarto, de camisola, em pé cantando, para ver se a embalava de madrugada, agarrada aos cabelos e ao cheiro dela. Eu deveria ter registrado mais esse período tão curto da vida, estaria rindo agora da minha cara de apaixonada, dos diálogos sem retono que eu botava de pé só para ver ela me olhar com cara de dúvida como quem diz “essa aí? Conheço de algum lugar”. E nem precisaria mostrar para todo mundo as fotos, porque não tenho esse impulso de ficar botando imagens minhas nas redes sociais. Seria mero consumo interno.
Dito isso, por fim, pergunto à Martha:
- E aí, vamos botar uma foto nossa para ilustrar este post?
- Você tá louca? Acabei de dizer que fiz uma queima de arquivo.
Eu estava momentaneamente fora de mim.
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