Religião e conservadorismo impedem avanço no debate sobre aborto no Brasil
No Uruguai, Câmara dos Deputados aprovou legalização da prática, mas aqui o tema ainda é tratado mais como tabu do que como questão de saúde pública
São Paulo – Movimentos feministas brasileiros enxergaram a aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto no Uruguai como exemplo a ser seguido para que um debate mais responsável sobre o tema se desenvolva no Brasil. O texto, que garante o direito das uruguaias de abortar até 12º semana de gestação, ainda precisa passar por segunda votação no Senado.
“O Uruguai é um país latino-americano em que há forte presença da igreja católica, como no Brasil. Então se aconteceu lá, aqui também pode acontecer”, afirma Miryam Mastrella, socióloga do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), ONG que promove pesquisas em direitos humanos e feminismo. Para ela, o debate sobre o aborto no Brasil ainda deixa muito a desejar. “O aborto ainda é tratado como tabu, e não como questão de saúde pública, como deveria ser”, comenta.
As eleições presidenciais de 2010 comprovam o tratamento do tema criticado pela pesquisadora. Assunto bastante debatido nas campanhas, o aborto foi tratado como uma questão pontual que definia, dependendo da posição dos candidatos, quem era ou não “a favor da vida”. “O aborto é tratado como moeda de barganha, de maneira muito superficial”, diz.
Além do peso de valores culturais e sociais conservadores, que interditam o debate sobre a descriminalização, Mastrella avalia que a religião também exerce influência nesse atraso. “Não há dúvida de que a religião é importante para aqueles que tem fé, mas num Estado plural e laico certos valores não podem ser colocados como universais, válidos e impostos a todos”.
Para a pesquisadora, os movimentos feministas têm uma força importante para puxar o debate para além dos valores morais e religiosos. “Os movimentos colocam em pauta o tema sob uma perspectiva mais séria, discutindo a autonomia e a dignidade das mulheres”, diz.
Sílvia Camurça, pesquisadora do SOS Corpo e coordenadora nacional da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), movimento feminista que articula ONGs e coletivos em todo o país, reafirma o caráter que o debate deve assumir para além das questões eleitorais. “O papel do movimento é reivindicar uma discussão franca e honesta, e não baseada em politicagem de campanhas irresponsáveis”.
Ela também ressaltou a função principal dos movimentos feministas do país. “O problema tem que ser colocado, e é preciso que se busque com a sociedade uma solução que proteja a vida das mulheres ao invés de criminalizá-las”.
A coordenadora da AMB afirmou que a criminalização dá margem ao crescimento da chamada “indústria do aborto”, que são as clínicas clandestinas para a prática abortiva. “Aborto não é caso de polícia, precisamos encontrar outra solução no âmbito da saúde pública".
Segundo Camurça, embora a decisão do Uruguai represente uma conquista frente à forças conservadoras que se opõem à descriminalização, ela ainda não é o que o movimento feminista idealiza.
O texto aprovado pela Câmara dos Deputados prevê a descriminalização da interrupção da gravidez desde que a mulher se apresente diante de uma equipe de médicos e psicólogos, que a informarão sobre todos os riscos, alternativas e programas de apoio à maternidade e à adoção. Após a entrevista, a mulher deve esperar cinco dias para confirmar sua decisão, e, finalmente, interromper a gravidez.
“Para os movimentos, isso significa desautorizar a mulher como ser eticamente responsável por suas decisões, significa tirar de nós essa decisão para colocar nas mãos de terceiros, mesmo que sejam médicos e psicólogos”, diz.
A decisão do Uruguai aconteceu na semana do Dia Latino-Americano de Luta pela Descriminalização do Aborto, que acontece nessa sexta-feira (28). Serão várias iniciativas e passeatas por toda a América Latina que visam reacender um debate crítico sobre o tema.
Saúde pública
A Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), que traçou o perfil da mulheres que abortam no Brasil, recebeu no último dia 17 o prêmio Fred L. Soper Award for Excellence in Health Literatura, concedido pela Organização Pan-Americana de Saúde para estudos de alto impacto na área da saúde pública.
O estudo foi financiado pelo Ministério da Saúde e feito pelos professores da Universidade de Brasília (UnB) Debora Diniz e Marcelo Medeiros. O prêmio é considerado o mais importante das Américas em referência à saúde pública. O estudo revelou que das 2002 entrevistadas no estudo, de 18 a 39 anos, 15% declararam que já fizeram pelo menos um aborto.
Para Mastrella, o perfil traçado das mulheres que abortam no país revela a perversidade da criminalização do aborto. “São mulheres de carne e osso, com emprego, muitas vezes com outros filhos, que têm religião, mas que optam pela interrupção da gravidez. É perverso que elas possam ser presas por causa disso”.
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