O espírito e o asfalto
Walcyr Carrasco
Nasci numa pequena cidade do interior de São Paulo, Bernardino de Campos, construída em torno da ferrovia Sorocabana. A torre da igreja da pracinha foi construída por meu avô materno, João, pedreiro. Morei lá até os 3 anos, quando minha família se mudou para Marília, bem maior. Passava as férias na casa de minha avó paterna, Rosa, em Bernardino. Com o tempo, toda a minha família mais próxima deixou a cidade. Os laços se esfiaparam. Fui morar em São Paulo. Lembrava com saudades de minhas férias em Bernardino, onde eu brincava sem medo nas ruas vazias. Quer dizer, não exatamente sem medo, porque às vezes alguém gritava que a boiada vinha vindo. Corríamos para dentro das casas, enquanto os bois tomavam a rua e passavam. Uma diversão! Passei bem uns 40 anos sem ir a Bernardino. Só voltei quando me convidaram para apresentar um recém-criado prêmio de teatro na região, há alguns anos. (E, ao que eu saiba, logo extinto.)
A cidade, ao contrário de outras do interior, não cresceu. A torre da igreja continuava lá. Mas a estação ferroviária fechara. Os trilhos, cobertos pelo mato. O cinema, onde eu me divertira tanto, transformado numa loja de sapatos. O filho da dona do hotel, criado em São Paulo, só tinha um sonho. Voltar para a cidade grande.
– Aqui, meu cabelo virou até notícia na rádio! – disse, apontando para o cocoruto verde.
Um primo em terceiro grau me reconheceu na rua. Fez questão de me levar até sua casa.
– Minha mãe sempre fala em você. Vai ficar feliz.
Fui com ele ao encontro da tia-avó que só vira quando menino e da qual mal me lembrava. Estava deitada. Ele a sacudiu.
– Mãe, mãe, acorda. Olha quem está aqui! – disse o primo.
A velha se mexeu. Abriu os olhos e encarou meu primo.
– Quem é você? – perguntou.
– Sou eu, seu filho! Veja só, é o primo que virou escritor.
– Estou muito feliz em ver a senhora, tia – falei, sorri, constrangido.
Ela virou de lado e voltou a dormir.
– Pode ter certeza que a mãe adorou sua visita – disse o primo. – Mas está com depressão. Conversei mais tarde com um funcionário da prefeitura.
– A depressão é um dos maiores problemas daqui – afirmou.
– Mas é um lugar tão calmo, cheio de paz – disse eu.
– Temmuita gente que se suicida. Se alguém compra corda, já fazem piada – afirmou o funcionário, para meu horror.
Foi um susto. Já ouvira a mesma história em outra cidade bela e bucólica: Pomerode, em Santa Catarina, onde os suicídios são em número elevado. A cidade brasileira com maior número de suicídios per capita também é pequena, com uma bela catedral neogótica, cachoeiras por perto e todo um cenário que lembra paz e tranquilidade: Venâncio Aires, no Rio Grande do Sul. Mas minha querida Bernardino também estava na lista?
Moro desde os 15 anos em São Paulo. Sempre reclamei do trânsito e da violência, que me faz temer até assaltos em restaurantes. Sempre sonhei em voltar para uma pequena cidade do interior. Nem falo em comprar um sítio, pois não me vejo cuidando do pasto ou ordenhando vacas.Mas talvez uma casa gostosa numa rua calma, onde possa dormir de janela aberta. Ainda mais agora, com a internet, eu poderia morar em qualquer lugar e enviar meus artigos, livros e capítulos de novela por computador. Viajei muitas vezes em busca desse novo endereço. Quando me falam de um lugar com cachoeiras, meu coração bate mais forte. Será lá?
Inicialmente, meu sonho foi detonado pela onda de violência em muitas cidades do interior. Tornaram-se frequentes os assaltos e sequestros, mesmo porque até os trabalhadores rurais usam crack. Há exceções, porém. Bernardino é muito calma, com poucas ocorrências policiais. E a depressão? Soube que muitas prefeituras criam postos psiquiátricos. O problema é mais profundo. As pessoas não têm o que fazer, a não ser falar umas das outras. Cria-se um sistema de vigilância sobre o comportamento alheio. Tudo o que infringe a regra vira notícia – até mesmo o cabelo verde de um rapaz. Prefeitos investem em melhorias urbanas. Fala-se muito em hospitais e asfalto. Raramente num circuito cultural que alimente o espírito. Isso também acontece em boa parte das metrópoles, onde
são raros os novos teatros, bibliotecas. Nas pequenas cidades, é pior ainda. O espírito das pessoas também adoece pela falta de atividades que provoquem indagações, criatividade, sentimento de equipe. Mergulhados no tédio, os cidadãos se deprimem.
Paz demais é insuportável.
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