Normas que pervertem vidas e destroçam lares
Nelson José de Castro Peixoto
Filósofo e Gestor Social de Aldeias Infantis em Brasília – Conselheiro de Direitos da Criança e do Adolescente do Distrito Federal
Adital
Pode-se escrever com severa assertiva que a legalidade restrita mata, maltrata e castiga. Dizer que ela engana o sentido mais límpido da justiça é verdade. Cumprir certas normas na obediência absurda do grito da lei esquece o sussurro protetivo que a fez nascer. A beleza da vida desbota e desfigura-se quando a mera legalização vira sinônimo de institucionalização. E escrevo aqui das crianças em serviços de acolhimento quando saem do cajado da compaixão e vão para vara da lei a fim de colocá-las na domesticada atmosfera de institucionalização.
Faz algum tempo que o paradigma de crianças e adolescentes serem sujeitos de direitos sente a resistência do Estado que na sua gana repressora quer inundar de terror legal os porões burocráticos para viabilizar o calabouço das organizações. E acontece a falsária forma de normatizar até o tamanho a cor e o tamanho do prato, mas se esquece do direito de comer, assim como legisla o tamanho da janela, mas esquece do direito de morar.
A patologia da "institucionalização de crianças” como objeto de estudo fez que a psicologia mostrasse a rotina distanciada da vida familiar como causa de transtornos de personalidade, ocasionando trejeitos de massificação que cola em crianças e adolescentes. Hábitos que se incorporam e criam um modo confuso e desintegrado de ser pessoa e de se portarem como cidadãos produtivos. Este jeito, enfaticamente institucionalizante, não facilita a interiorização de valores como autonomia, empreendedorismo, ética, estética, protagonismo, resiliência e liderança. Não favorece a responsabilização para com a própria vida, adormecem e afastam os sonhos. Assim conspiram contra as perspectivas felizes do futuro, abandonando a vida sem o pulsar da realidade social e sem relacionamentos naturalmente humanizados.
Já testemunhamos sob a vara opressora das normas uma mulher com um avental branco, cabeça raspada e de véu. Servindo com suas alvas luvas crianças que batendo na mesa acolhem o alimento servido em bandejões, esses advindos de empresas de "nutrição e saúde”. Algo monstruoso, do outro mundo, distante do calor ardente de uma família grande com filhos de várias idades se relacionando ao redor de uma mesa posta.
E o que dizer dos vigilantes das normas, certos guardiões da Lei? Ora, os parâmetros de fiscalização das casas lares nasceram da situação lastimável dos abrigos-depósitos do passado, sem recursos mínimos e ainda a acreditar na situação irregular do "menor”. Mapa mental conectado no inconsciente coletivo da institucionalização total e de suas exigências ainda presas do modelo da família burguesa e longe do burburinho da família numerosa. Fiscalização que não se desapega dos procedimentos de restaurantes, cozinhas industriais ou coisa parecida. A mesma lógica se aplicou aos Orfanatos, Casas de Correção, Internatos de Menores, onde muitas crianças circulavam como "iguais”, massificadas e reduzidas a um número ou um CID, precisando de segurança e vigilância 24 horas.
Mas onde está a contradição nos novos tempos do espírito insurgente do acolhimento de crianças? Falamos da modalidade da Casa Lar que já nasce em outro paradigma para não institucionalizar as crianças que precisavam ficar na provisoriedade e excepcionalidade longe de suas famílias, preferencialmente na mesma comunidade e sem muito distanciamento de seu estilo de vida.
Consideramos ser inteligente que a Casa Lar fuja das exigências exageradamente institucionais. Esta não pode ser igualada a um restaurante, creche ou abrigão. Não existe ainda uma legislação apropriada com parâmetros para casas lares, tipo família grande, que diminuísse para as crianças a caracterização de vida institucional, quando esta já é conhecidamente perversa para crianças privadas de cuidados parentais.
Sabe-se que essas normas causam mais prejuízos para a personalidade dos pequenos e para o futuro destes do que o tamanho da janela ou a cor do azulejo, porque não é de igual proporção ao de um restaurante. Não há parametrização para o estabelecimento de normas que pautam pelos meandros da psicologia social e da antropologia cultural. Apressadamente faz-se a recorrência do que já estava estabelecido para as grandes instituições e aplica-se para as casas lares.
Segurança, luminosidade, ventilação, tudo é aceitável quando aliados ao cuidado, à individualização solidária e ao pertencimento. Cuidar do ninho possível, preparar-se para a reintegração ou a autonomia de vida. Evitar que a casa tenha o ranço de caracterização institucionalizante e não o sabor de alegria contagiante e de animada irmandade. Quando se considera o interesse maior da criança, morar em casas simples e acolhedoras é o melhor negócio. Um direito que infelizmente não existe para muitos que estão com seus pais.
O direito à convivência familiar e comunitária é ter uma casa/lar, pois resolve em muito o impasse da separação da família de origem. Faz-nos parodiar o lindo dito de Jesus: "...os pássaros tem seus ninhos e minha criança tem onde repousar o coração ao lado do seu pai e de sua mãe”.
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