ISABEL CLEMENTE
Corre. O ano está acabando e você tem pouco tempo para decifrar o filho que acabou de chegar. Esses choros todos, esses sorrisos enigmáticos, esses olhares perdidos cheios de significados...o que dirão? Logo ele terá um ano, e aqueles olhares ganharão foco, embora sejam facilmente desviados. Novos desafios se apresentarão nesse diálogo entremeado de silêncios e sílabas desconexas, e o bebê que ficava deitadinho no berço estará andando cambaleante por toda parte.
Levanta, você tem um filho de dois anos para correr atrás. Quando ele ampliar o vocabulário, parar de repetir o que ouve e você começar a se surpreender com essa fase, ele estará com três. Tá vendo?
Tão delicada essa criança, vulnerável e cheia de vontade. E cheia de brinquedos também. Como pode uma criança tão pequena acumular tanta tralha em tão pouco tempo? Nasceu outro dia e fala demais, o tempo todo, inclusive quando você não ouve. Presta bem atenção, o quarto continua bagunçado mas agora você tem um filho de quatro anos para cuidar.
Você precisa confirmar descobertas e ratificar perguntas. É o que ele espera de você. De uma hora para outra ele vai desenrolar a língua, deixar de falar como o Cebolinha e quando você estiver convencido sobre o método ideal para contornar as pirraças de uma criança de quatro, abrindo mão inclusive de escolher a roupa dela, ela completará cinco anos e talvez peça menos colo, embora você insista em dar, só que o peso faz diferença.
A criança definitivamente não cabe mais nos seus braços, ainda mais agora com seis anos. Sim, senhor, seu filho já fez seis anos e você terá menos tempo ainda para dar conta do que está acontecendo porque a primeira infância está se esvaindo, dentes caindo, outros demorando muito para aparecer, quando nascerão os dentes permanentes, você se pergunta.
Abra o olho porque quando eles nascerem, seu filho já terá sete anos de idade e estará oficialmente na segunda infância. Ficou para trás o tempo de semear as bases e cultivar os tais laços que, segundo psicanalistas, determinarão muita coisa daqui pra frente. Será que fiz tudo certo até aqui, em algum momento você se questionará. Ei, esquece isso, olha pra frente antes que o futuro te atropele.
Tem hora que você irá se perguntar também se está lidando com um adolescente em forma de criança. Onde raios foi parar sua criança? Seu filho - ou filha - parece repentinamente muito amadurecido, capaz de entabular diálogos e observações profundas, cruéis até e tocantes, mas tem hora que ele derrapa e você reencontra a criança de quatro. Arrá! Bastava isso para você ter certeza sobre ainda ter uma criança em casa, um alívio, não é, dá pelo menos para respirar um pouco.
Daí vida segue, a criança faz oito, dentes caem sem causar grandes rebuliços, nada de celebrações públicas a respeito do assunto porque ela odeia ser o centro das atenções, melhor poupá-la, embora aquele sorriso desencontrado de dentes em tamanhos tão diferentes seja até engraçado.
Você está tateando ainda sobre como funciona a cabeça de uma criança de oito anos mas eis que ela faz nove, caramba! Como assim? Surge um novo personagem, uma outra personalidade. A criança faladeira está mais contida, astuta, cheia de epifanias e tem momentos, honestamente, que você tem uma única certeza na vida: a pré-adolescência espreita sua casa. Não é assim? As crianças de hoje em dia estão cada vez mais espertas, amadurecem muito cedo, você tem provas disso em casa com seu filho de nove, digo, dez anos, desculpe, porque ele fez aniversário outro dia e todo mundo percebeu a grande mudança só que você precisou antes constatar uma penca de sapatos que não servem mais. Quem deixou tudo isso se acumular dentro do armário ao longo dos anos? Não foram anos? Foram meses?
A criança ganhou até bicicleta nova porque a outra ficou pequena. Está tão alta que todo mundo erra a idade. Já está com doze? Você diz, não, calma lá! Ainda consigo ver o couro cabeludo dela, quer dizer, eu conseguia até outro dia. Pra vocês verem como criança cresce rápido. Toma chá de trepadeira toda noite quando a gente não está olhando. Basta um momento de distração e lá está o filho de onze anos achando que agora sim é pré-adolescente e você mal decifrou o personagem de dez.
Para com isso, criança, você nem fez doze anos ainda. O quê? Desde quando você tem treze? A adolescência irrompeu porta adentro da casa como uma intempérie e você não viu, achou que era bobagem, mas bem que você desconfiava daquele ar de quem tudo sabe e não precisa mais de você nem de suas opiniões. Estamos falando da fase mais complicada, não é o que dizem? Altos e baixos, altos e baixos.
Você ainda está zonzo com a montanha-russa do crescimento do seu filho, mal se recuperou da primeira infância. Despediu-se sem acenar para vários personagens e não percebeu. Agora resta a saudade dilacerante dos detalhes evaporados pelo tempo. Ela dizia pacagaio e tevelisão. Não mais.
Manias se foram, trejeitos se instalaram, uma personalidade única desabrochou. Você até detecta heranças suas, mas são muitos os traços forasteiros. E se você parar um instante e olhar para fora, verá que tem um adulto aquecendo, quase pronto, doido para entrar em campo.
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