The New York Times
Shirin Ebadi*
Num hotel em Belfast, no início do ano, histórias de vida e crianças enchiam os quartos e corredores; apesar disso, as ativistas de mais de vinte países que estavam ali não conseguiam se esquecer das velhas amigas que não puderam participar da reunião.
Cantamos parabéns para uma delas: Nasrin Sotoudeh, que estava cumprindo pena de seis anos no temido presídio Evin, em Teerã. Advogada dedicada a ajudar mulheres presas injustamente por seu trabalho em prol de direitos iguais, ela foi acusada de agir contra a segurança nacional ao criticar o regime.
E não era a única. Ali em Belfast, compartilhamos histórias de agressão, encarceramento, tortura, morte e medo. Da Libéria, Mianmar, Colômbia, Haiti, Congo, Sudão, Sri Lanka e outros países, trocamos informações sobre os altos níveis de violência contra a mulher ‒ seja por repressão, ganância, conflito armado ou desigualdade ‒ e a falta de responsabilidade dos governos e da sociedade como um todo.
O que tínhamos em comum era o desejo de oferecer um futuro seguro para nossas filhas e para todas as gerações de mulheres.
Por mais reconfortante que tenha sido encontrar apoio nas semelhantes, é preocupante admitir que nossos pedidos por mudanças continuam um refrão conhecido há décadas: queremos ter o direito de viver num mundo em que as decisões sobre nossos corpos sejam só nossas, de acordo com nossas ambições, sem a ameaça da violência. Infelizmente, essas liberdades continuam a ser vistas como desafios radicais a normas e princípios sociais arraigados.
As boas intenções da comunidade internacional não são suficientes; as palavras que formam declarações e resoluções têm que ser verdadeiras e transformadas em ação para que as sobreviventes sintam alguma diferença e para que se faça progresso efetivo na prevenção do abuso.
Se há um fator que me motiva, sem dúvida é o das mulheres agindo nas comunidades de que fazem parte. Nesses últimos anos, venho observando nossa força coletiva ganhar força e impulso: elas estão em ascensão e exigindo punição para crimes não só contra si mesmas, mas a sociedade como um todo.
No meu país, o Irã, as mulheres lutam incessantemente para desafiar e diminuir os efeitos das leis discriminatórias impostas após a Revolução Islâmica de 1979. Muitas como Nasrin ‒ e a minha jovem colega Bahareh Hedayat, uma universitária condenada a 9,5 anos de cadeia ‒ foram presas por causa de seu trabalho como advogadas, jornalistas ou ativistas e de seu esforço em expor os abusos perpetrados pelo regime.
Apesar da ameaça iminente de punição, as iranianas lançaram a campanha Um Milhão de Assinaturas, em 2006, para atrair apoio dos cidadãos comuns e mudar as leis que promovem a violência contra a mulher. Os protestos públicos se tornaram perigosos demais, sim, com muitas de nós detidas e indiciadas, mas continuamos a luta ‒ e ampliamos nosso objetivo em nível comunitário, para tentar mudar a mentalidade geral a partir de grupos menores.
As iranianas, assim como em muitos outros países, estão exigindo mudanças fundamentais que lhes garantirão o direito a uma vida segura, livre de ameaças. Mulheres do mundo todo, inclusive no Ocidente, lutam todos os dias contra a violência insidiosa dentro da sociedade. As crises políticas e os conflitos armados continuam a gerar abuso e agressão contra nós.
Algumas estão ocorrendo de cima para baixo, mas é preciso ter cuidado para saber o que exatamente isso significa. Depois das recentes eleições presidenciais no Irã, por exemplo, o governo nomeou, pela primeira vez, uma mulher como porta-voz do Ministério do Exterior e outra como líder da missão iraniana em Genebra.
Entretanto, segundo a lei do país, uma mulher casada ainda necessita da permissão por escrito do marido para tirar passaporte. O que aconteceria se o marido da nova embaixatriz a proibisse de viajar?
A nova representante do ministério não está autorizada a ser a única testemunha num tribunal, apesar da responsabilidade de falar em nome de toda uma nação. Segundo o Código Penal Islâmico de 2013, o testemunho feminino vale metade do masculino.
Nossa determinação de mudar os sistemas que nos reprimem forçaram inúmeros governos e a comunidade internacional a agirem.
A África do Sul lançou uma investigação inédita no estupro em massa supostamente orquestrado e perpetrado por Robert Mugabe e seu partido, o Zanu-PF, durante as eleições de 2008 no país vizinho, o Zimbábue; na Guatemala, apesar do grande risco à sua vida, a primeira Procuradora Geral está em busca dos arquitetos do genocídio cometido ali nos anos 80, no qual o estupro era usado para dizimar comunidades.
De fato, neste último ano houve incontáveis atividades para combater a violência a mulher. O Reino Unido deu a largada, motivando os membros do G-8 e outras nações a instituírem um fundo para acabar com a violência sexual. Em setembro, aproveitando a Assembleia Geral da ONU, 113 países assinaram a Declaração de Compromisso pelo Fim da Violência Sexual em Áreas de Conflito, que proíbe anistia para esse tipo de crime em acordos de paz e permite que os agressores sejam punidos em qualquer lugar do mundo. Também promete pôr em vigor um novo Protocolo Internacional, em 2014, para garantir que as provas reunidas possam ser utilizadas em juízo.
Essas iniciativas internacionais são mais que bem-vindas. Quando países como o Congo ‒ descrito pelo enviado especial do Secretário-Geral da ONU como a "capital do estupro" do mundo ‒ se comprometem a obedecer a uma declaração abrangente como essa, é sinal de que as atitudes estão realmente mudando.
É preciso, porém, cautela para não confundir a disposição de assinar um documento com uma verdadeira redução na violência. Tais acordos pouco fazem por aquelas que precisam de ajuda imediata ‒ e ninguém sabe melhor disso que as mulheres responsáveis por suas comunidades.
São elas que veem as promessas feitas pela comunidade internacional deturpadas ou engolidas pelas normas culturais e interesses nacionais.
Alguns dos países que estão assinando esses acordos são os mesmos que financiam e fornecem apoio militar a governos que apoiam abertamente criminosos de guerra e/ou se recusam a prendê-los ‒ como a saga de Omar Al-Bashir, presidente do Sudão que, apesar de acusado pelo Tribunal Penal Internacional de genocídio, inclusive de orquestrar estupros em massa em Darfur, viajava livremente para muitos países.
Tem também os governos que fazem acusações sem assumir a responsabilidade pela violência contra suas próprias mulheres ‒ como no caso que acabei de mencionar da África do Sul, que investiga os casos de estupros no Zimbábue enquanto sofre com uma das taxas mais altas de violência contra a mulher do mundo.
Apesar disso, em ocupações, revoluções e levantes, no Oriente Médio e outros lugares, as mulheres estão tomando a dianteira ‒ e se tornando altamente visadas.
Na Índia, elas exigiram serem ouvidas em protestos contra crimes brutais, foram às ruas pedindo mudanças no regime de lugares como Tunísia e Iêmen e lotaram um tribunal para contar como foram violadas na frente do ex-presidente que estava sendo julgado por genocídio na Guatemala.
Depois de anos de luta para se fazerem ouvir, aquelas que lidam com comunidades afetadas pela violência estão fazendo o que podem para efetivar as mudanças. A Campanha Internacional pelo Fim do Estupro & Violência Feminina em Zonas de Conflito, por exemplo, une mais de 700 organizações que variam desde forças poderosas como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch a grupos locais como o Hospital Panzi, no leste do Congo, um lugar inacreditável, que recupera mulheres dilaceradas pela violência sexual. Literalmente.
Juntas, elas formam uma corrente humana que usa a voz coletiva para ser ouvida não só nos salões do poder, mas nas ruas, casas e escolas. A meu ver, o segredo da verdadeira mudança reside na força da organização de base.
Muitas de nós vivem num sistema patriarcal que justifica o uso da violência; mudar o sistema em si levaria séculos. Como mulheres, cidadãs e parte da comunidade global, temos que fazer com que a sociedade assuma sua responsabilidade. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que nos tornamos, sim, uma ameaça ao patriarcado e aos governos que ameaçam nos silenciar.
Minha colega Nasrin Sotoudeh, que não pôde se juntar a nós em Belfast, foi solta em setembro pelas autoridades iranianas, dias antes da viagem do novo presidente, Hassan Rowhani, à Assembleia Geral da ONU.
Aquelas de nós que batalham para defender os direitos da mulher no Irã sabem que o regime a libertou apenas para apaziguar os ânimos da comunidade internacional e não por ter mudado de ideia ‒ e embora incrivelmente felizes de vê-la livre, sabemos que sua liberdade e de muitas outras não é completa.
As promessas são boas, mas as mudanças são ainda melhores. Um grupo de mulheres decididas, seja reunido num salão, dançando e cantando, ou em espírito, energizado, corajoso e pronto para responsabilizar quem quer que seja por seus atos ‒ essa é a verdadeira revolução.
*Shirin Ebadi recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 2003. É uma das fundadoras da Iniciativa Nobel das Mulheres, organização global que administra com outras cinco laureadas, e é uma das diretoras da Campanha Internacional pelo Fim do Estupro & Violência Feminina em Zonas de Conflito.
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