Por Vladimir Passos de Freitas
Umberto Eco escreveu A historia da feiura, obra que trata da relação entre o feio e o mundo das artes, como o feio é visto atualmente e se ele só existe devido ao belo. Vinicius de Moraes, mais direto ainda que diplomaticamente, disse com clareza no poema “Receita de Mulher”: “as muito feias que me perdoem, mas beleza é fundamental”.
Frise-se, contudo, que o conceito de feio ou bonito pode variar conforme o local ou a cultura de um povo. Sem dúvida, não há uniformidade. Por exemplo, um índio de um grupo Botucudo (tronco macro-jê), etnia que se localizava no sul da Bahia, ao usar no seu lábio inferior um botoque, ou seja, um disco branco feito de madeira que pode chegar a 12 cm, deveria despertar a admiração do sexo oposto. Tal adorno, porém, não seria um atrativo se exibido hoje para uma jovem estudante de Direito.
Mas, na análise que aqui se faz é preciso partir de um padrão mínimo consensual, sob a ótica de beleza de nosso olhar ocidental. Assim será feito.
A premissa, que dispensa prova por ser fato notório, é a de que ter um belo rosto ajuda nos tortuosos caminhos da vida. Desperta interesse, boa vontade. Mas, será que ter sido beneficiado pela natureza com uma bela face pode auxiliar na solução dos conflitos jurídicos? Obviamente, este aspecto não deve ser levado em conta na solução de um litígio, seria revoltante. Mas, esta proibição ética é sempre obedecida? Ou será que às vezes é desobedecida prestigiando-se o belo, ainda que inconscientemente.
Comecemos pelo mundo animal. A Constituição protege a fauna no artigo 225, parágrafo 2º, inciso II. A Lei dos Crimes Ambientais (9.605/98) ampara, inclusive, os animais domésticos, como se vê do seu artigo 32. Vejamos se a regra constitucional e legal é obedecida indistintamente.
Com forte componente na beleza que ostentam, 178 cães da raça Beagle foram resgatados, no dia 18 de outubro de 2013, em ação desenvolvida por militantes de uma ONG junto ao Instituto Royal, na cidade de São Roque (SP), porque seriam submetidos a experiências científicas destinadas à descoberta de remédios para doenças de seres humanos, as quais certamente lhes tiraria a vida.
Não por seus dotes de beleza, mas sim por serem inteligentes, os chipanzés vêm sendo objeto de ações judiciais que pretendem ver-lhes reconhecida a condição de sujeitos de direitos, inclusive com proteção através de Habeas Corpus (v.g., TJ-RJ, 2ª Câmara Criminal, HC 0002637-70.2010.8.19.0000). Papagaios, tartarugas, pássaros, pequenos e bonitos, animais de estimação, são objeto de ações judiciais que visam protegê-los da ação de órgãos ambientais e mantê-los com seus donos. Neste sentido já decidiu o Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
Mas, nem todas as espécies da criação são lindas, queridas e inteligentes como as dos exemplos citados. O morcego, por exemplo, além de não ser bonito, não age às claras, ao contrário, só sai à noite. Além disto, é cego e orienta-se por uma espécie de radar o que gera medo nas pessoas. Não se sabe ao certo se estes são os motivos, mas o certo é que não se tem conhecimento de nenhuma ação civil pública para protegê-los.
As minhocas são outro exemplo. Importantes na renovação da terra, iscas atraentes na pesca de água doce, não foram prestigiadas em decisão do Superior Tribunal de Justiça no ano 2000 quando se decidiu que “Apanhar quatro minhocuçus não tem relevância jurídica. Incide aqui o princípio da insignificância porque a conduta dos acusados não tem poder lesivo suficiente para atingir o bem tutelado”. (3ª Seção, relator Fernando Gonçalves).
Os insetos também não gozam de maior prestígio na área jurídica. Mesmo fazendo parte da cadeia alimentar, colaborando para o equilíbrio ecológico, ajudando na polinização das plantas, produzindo em alguns casos mel ou seda, e até sendo usados em alguns países na alimentação dos seres humanos (www.cultivehortaorganica.blogsport.com). É verdade que a Lei 9.605, de 1998, no artigo 29 considera crime matar espécimes da fauna silvestre e o dispositivo alcança os insetos e até as larvas (parágrafo 1°, inciso III). Contudo, não se tem conhecimento de ações penais envolvendo a morte de insetos (v.g., abelhas) e são desconhecidas ações civis públicas para que sejam protegidos (v.g., as lesmas, por alguns consideradas um prato sofisticado).
Passemos aos seres humanos, alargando o conceito de beleza para alcançar a boa apresentação pessoal. Roupas adequadas ao local e momento, um bom corte de cabelo, maquiagem adequada nas mulheres, homens com a barba feita. Evidentemente, não é preciso lei para dizer que estes e os outros, os pouco cuidados, merecem igual tratamento nas relações jurídicas. Mas, será esta a rotina no mundo real?
Imaginemos dois candidatos a estágio em um conceituado escritório de advocacia, com filiais nas grandes capitais e no exterior. Um é bem apessoado e está vestido elegantemente, o outro é exatamente o oposto. Quem faz a entrevista certamente será uma pessoa bem cuidada e que, mesmo inconscientemente, tenderá a escolher alguém semelhante. O primeiro levará vantagem? Terá mais facilidade em ser o escolhido? Tudo indica que sim.
Dizem alguns que alguns escritórios de advocacia localizados nos grandes centros contratam jovens e belas advogadas com uma missão principal: levar petições importantes, com pedido de liminar ou antecipação da tutela, direta e pessoalmente aos juízes. Será que esta é uma técnica que influi na concessão de uma liminar? Será?
Um pedido de indenização por danos morais por uma cicatriz no rosto, fruto de agressão e consequentes lesões corporais, será visto da mesma forma, seja quem for a vítima? Em outras palavras, a cicatriz na face da mulher-gorila de um circo do interior é avaliada da mesma forma que a de uma modelo fotográfica? Despertará o mesmo sentimento de revolta? Ou as reações serão diferentes, menor no primeiro exemplo.
Entre o feio e o bonito estamos, na verdade, muitas vezes diante de uma injustiça da natureza. A vida pode ser, ainda que disto não haja a menor garantia, mais fácil a quem detém a beleza. Mas, ela é passageira e por isso não pode ser colocada em um altar. Acaba, como tudo. Nos encontros de turmas de formandos, a partir do 20º ano, os comentários mais comuns são sobre a calvície de um colega, os quilos a mais da loira que sentava na frente ou aquela que se tornou irreconhecível após a décima plástica.
Finalmente, há que ser lembrada a beleza interior. Ela demora para ser reconhecida, é verdade. Mas, se for bem administrada crescerá com o tempo. Por isso, sem prejuízo de admirarmos a beleza externa, procurar a beleza interior das pessoas e evitar avaliações em razão da aparência, devem ser metas a serem perseguidas.
E que venha 2014, assegurando a todos, belos ou nem tanto, boas oportunidades nas relações jurídicas e muito sucesso na vida profissional.
Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi presidente, e professor doutor de Direito Ambiental da PUC-PR.
Revista Consultor Jurídico
Nenhum comentário:
Postar um comentário