Não é o casamento que muda as pessoas, mas os filhos. Você nunca mais será o mesmo
ISABEL CLEMENTE
Muita gente se pergunta se o casamento muda as pessoas. Bobagem. Se a pessoa casou ou juntou porque estava a fim, fez o que quis. Ela começa a fazer o que não quer e a mudar pra valer depois que tem filho. Dogmas cairão por terra. Verdades absolutas serão questionadas e máscaras irão se desmanchar. Com filhos, você saberá se aquele namorado engraçado tem realmente bom humor. Você descobrirá se a moça que adora bancar a criativa é capaz de acionar o botão fair-play nas situações inesperadamente difíceis. Quando se tornar pai ou mãe, você será obrigado a abrir mão de hábitos, preferências e até preceitos éticos. Aos poucos deixará de ser você.
Eu desisti, por exemplo, da ideia de ter uma casa permanentemente arrumada e clean. Incorporei brinquedos, chinelos perdidos, canetinhas soltas e marcas de mãozinhas sujas nas paredes à paisagem da decoração doméstica. Percebi que só uma pintura anual satisfaz os que realmente prezam por paredes imaculadas.
Não, eu não pinto minha casa todo ano porque a duração daquele cenário perfeito pode variar de um dia a um improvável período de 364 dias. Eu mudei. Não ligo tanto assim para isso.
Não brigo mais por encontrar as almofadas da sala na cadeira da cozinha servindo de assento para criança. O tecido recebe adereços novos como grãos de arroz, feijões amassados, pingos de suco, numa customização involuntária que une gastronomia com arte. Defini apenas as que podem e as totalmente proibidas para poupar alguns exemplares. Um dia eu troco os tecidos.
Também desisti de manter gavetas de calcinhas, meias e pijamas arrumadas. De tempos em tempos, faço limpezas no armário das crianças retirando peças furadas, pares de meias descasados há meses (eu dou uma chance para o par aparecer), roupas que deveriam estar em outra gaveta ou quem sabe penduradas, brinquedos e coisas minhas que foram parar ali não sei como. Eu acreditava que a bagunça externa refletia uma certa desorganização de caráter ou algo assim. Que nada. Eu descobri que é uma estratégia de guerra. Como mãe, eu compro algumas batalhas e perco outras de menor relevância, só isso.
Como você pode perceber, não sou a mesma nesse quesito.
Eu vi uma a uma minhas caixas de enfeites sendo utilizadas para fins variados como guardar bolas, bonecas e desenhos em papéis coloridos. Eu não me prendo a posses, compartilho.
Eu não estranho mais o fato de o lindo e pesado vaso de cristal, comprado em seis parcelas no cartão de crédito, ter virado depósito de lápis, canetas sem tampa e pilhas. Quando a cena me incomoda, eu limpo, pra no dia seguinte encontrar tudo no mesmo lugar errado.
Eu abri mão também de demorar para escolher roupas, tanto na hora de me vestir como de comprar. Não posso desperdiçar tempo, ainda mais com a porta do armário aberta porque enquanto isso acontece há meninas brincando de esconder entre as minhas roupas. Melhor fechar logo a entrada dessa outra dimensão chamada "armário da mamãe" para onde as crianças adoram se transportar. Tornei-me, portanto, uma pessoa mais prática e minha praticidade já fez com que eu vestisse camisas do avesso e trouxesse duas blusas com defeito da loja para casa. Prática e cega eu fiquei.
Eu continuo acreditando que refeições devem ser feitas com calma. Eu demoro pra mastigar. Sempre fui assim. O que acontece quando tenho pouco tempo ou sou muito interrompida é comer menos e frio. Parece que, dos hábitos adquiridos, comer pouco é o único cientificamente apontado como bom para minha saúde. Dizem que aumenta a longevidade. Para pouco sono, pouco descanso e pouco exercício, a teoria não se aplica. Nesses casos, piorei.
Eu sufoquei minha aversão a banheiros públicos. Sou frequentadora assídua deles. Do avião ao shopping, nada me escapa. Tornei-me uma especialista em limpar e forrar tábuas enquanto impeço a criança de tocar em qualquer superfície suspeita. Uma pessoa-polvo. Não tenho a menor dificuldade para levantar a perna e acionar com o pé a descarga quebrada e pingando onde enxergo germes, bactérias e resquícios de excrementos humanos. Isso me dá elasticidade. Também respiro tranquilamente pela boca enquanto converso com naturalidade sem entrar em pânico. O cheiro não vai me matar. Lenços secos, umedecidos e capas de plástico para sanitários fazem parte do acervo permanente da minha bolsa. Banheiros femininos costumam ser mais limpos do que os masculinos, então sobra para mim. Eu fiquei mais adaptável e, como falta muito para deixar de fazer isso, melhor não reclamar.
Com o tempo, passei a aceitar o fato de que meu velho e bom hábito de ler um livro de uma tirada só é coisa do passado, de gente ansiosa. Para que a pressa? Hoje degusto um livro por meses a fio. Fiquei mais paciente com leituras.
Aliás, fiquei mais tolerante ao telemarketing também. É difícil hoje, depois de tanto treino junto a crianças, eu sair do sério com alguém do outro lado da linha. Antes de ser mãe, eu achava que não era minha obrigação ouvir muita bobagem ou aturar a insistência alheia em silêncio obsequioso. Hoje eu consigo sorrir.
Também encaro como uma economia forçada minha incapacidade de ficar muito tempo ao telefone em casa. Na verdade, nem sei para que tenho telefone fixo se não consigo usá-lo. Eu me desapeguei dessas coisas.
E, finalmente, fiz concessões morais. Passei a ver sob outro prisma o termo corrupção de menores porque você percebe que, em determinadas situações, só um picolé consegue esfriar os ânimos. Literalmente.
A gente muda por fora, ganha olheiras e roupas amassadas, mas a essência fica melhor, vai por mim.
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